A "Ucrânia nazista" e os papagaios do Kremlin A "Ucrânia nazista" e os papagaios do Kremlin
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A “Ucrânia nazista” e os papagaios do Kremlin

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Mario Sabino
5 minutos de leitura 02.03.2022 08:26 comentários
Opinião

A “Ucrânia nazista” e os papagaios do Kremlin

A mentira de que a Ucrânia tem um regime nazifascista -- e que, portanto, é verdadeiro o pretexto de Vladimir Putin de invadir o país para "desnazificá-lo" -- começou a ser inventada em 21 de novembro de 2013, quando houve o início do que viria a ser chamado de Revolução de Maidan. Centenas de manifestantes se reuniram na principal praça de Kiev ("Maidan" significa "independência"), para protestar contra a recusa do então presidente do país, Viktor Ianoukovytch, de assinar o acordo de associação com a União Europeia, nos termos que a Geórgia, por exemplo, hoje mantém com o bloco...

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A “Ucrânia nazista” e os papagaios do Kremlin
Reprodução/RT

A mentira de que a Ucrânia tem um regime nazifascista — e que, portanto, é verdadeiro o pretexto de Vladimir Putin de invadir o país para “desnazificá-lo” — começou a ser inventada em 21 de novembro de 2013, quando houve o início do que viria a ser chamado de Revolução de Maidan. Centenas de manifestantes se reuniram na principal praça de Kiev (“Maidan” significa “independência”), para protestar contra a recusa do então presidente do país, Viktor Ianoukovytch, de assinar o acordo de associação com a União Europeia, nos termos que a Geórgia, por exemplo, hoje mantém com o bloco. Viktor Ianoukovytch cedeu à pressão de Vladimir Putin para não cumprir o compromisso que havia assumido com os cidadãos, favoráveis à entrada na União Europeia. O protesto aumentou exponencialmente à medida que o governo usou da força para tentar conter os protestos. A coisa foi num crescendo, para, em janeiro de 2014, virar insurreição contra um regime que se submetia à Rússia, contra os interesses nacionais, privilegiava uma oligarquia corrupta, havia restringido a liberdade de manifestação, prendido um monte de gente — e cuja polícia matara três manifestantes. Partidos de oposição tomam o lado dos manifestantes.

Foi nesse contexto que um pequeno grupo de extrema-direita, chamado Setor Direita, mostrou a face, promovendo atos violentos contra o governo, no seio de uma imensa maioria pacífica. A tensão ganhou voltagem e, em 18 de fevereiro de 2014, o governo de Viktor Ianoukovytch decidiu desocupar a praça Maidan, matando  95 manifestantes. No embate, morreram 19 policiais.  No dia 21, um acordo entre os partidos de oposição foi assinado, com o aval dos ministros das Relações Exteriores alemão e polonês, para que as eleições presidenciais fossem antecipadas. O representante russo, que também estava no grupo de mediação, recusou-se a colocar o seu  jamegão no acordo. Viktor Ianoukovytch fugiu e, dias depois, apareceu na Rússia, numa entrevista coletiva, dizendo-se vítima de um golpe. O roteiro de ficção estava escrito para que a Rússia colasse o adjetivo “nazista” na Ucrânia, propiciando a Vladimir Putin invadir a Crimeia e fazer as suas porcarias em Donbas, inclusive com o uso de sua força mercenária, a Wagner — fundada e chefiada por um nazista –, assunto de um artigo publicado ontem por mim.

A história da Ucrânia e de todos os imbróglios recentes envolvendo o país está muito bem contada no livro L’Ukraine: de l’Indépendance à la Guerre, de Alexandra Goujon, uma professora e palestrante francesa, especialista em Ucrânia e Belarus. Ela desfaz meticulosamente o roteiro russo, repetido à exaustão por papagaios brasileiros. Transcrevo um trecho do livro:

A expressão golpe de estado fascista ganha corpo quando uma operação militar russa foi lançada na Crimeia, na véspera da entrevista coletiva de Ianoukovitch. A anexação da península é concretizada pelas autoridades russas, em 16 de março, via um referendo não reconhecido pela comunidade internacional. A campanha para o referendo se desenrola na ausência das autoridades de Kiev, proibidos de entrar na Crimeia, e com cartazes que pedem os cidadãos a escolher entre um mapa da península com um suástica preta sobre fundo vermelho e uma outra com as cores da bandeira russa. O poder ucraniano é, então, diretamente associado ao regime nazista. O nome junta fascista (para designar o regime em Kiev) se espalha também nas regiões orientais de Donetsk e Luhansk, onde, semanas mais tarde, desenvolve-se  um separatismo que provoca um conflito entre rebeldes e forças armadas ucranianas, apoiadas por dezenas de batalhões de voluntários, entre os quais  o do Setor Direita ou o regimento Azov, de extrema-direita, sobre os quais a imprensa russa, mas também a estrangeira, lançam luz.”

Onde o nacionalismo é exacerbado por tensões externas sempre haverá lugar para a intromissão de extremistas de direita, o que não significa que essa minúscula parte possa contaminar o todo. O regime ucraniano é democrático, respeita as minorias e continua a querer integrar-se a um bloco, a União Europeia, que tem no estado de direito a sua pedra angular — tanto é que a Polônia, atualmente, com a sua orientação autoritária, sofre sanções do bloco ao qual aderiu.

Como resume Alexandra Goujon, “a revolução de Maidan de 2013/2014 na Ucrânia não pode ser associada nem a um golpe de estado fascista nem a uma operação de potências ocidentais. É uma revolta massiva de cidadão comuns contra um presidente considerado autoritário e corrupto. Ainda que grupos de extrema-direita tenham tido um papel-chave nos enfrentamentos com a polícia, eles permanecem marginais tanto no movimento como no novo governo que sucedeu ao antigo ou no seio das forças combatentes no leste. As chancelarias ocidentais, mediadoras durante a revolução, somente acompanharam a mudança de poder em Kiev”.

A afirmação de que regime ucraniano é nazista, assim como o de que a Ucrânia é uma invenção de Lenin (Alexandra Goujon também desnuda tal falsidade), é uma fake news nascida em Moscou, da cachola de Vladimir Putin e os seus cúmplices, que usam dessa retórica para invadir um país pacífico apenas para satisfazer a sua sanha imperialista e reviver os tempos de glória podre da União Soviética. Quem o repete é papagaio do Kremlin.

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Mario Sabino é jornalista, escritor e sócio-fundador de O Antagonista. Escreve sobre política e cultura. Foi redator-chefe da revista Veja.

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