A Rússia é de Marte, europeus e americanos estão perdidos no espaço
Na noite desta segunda-feira, enquanto Vladimir Putin invadia a Ucrânia com tropas encarregadas da nobre tarefa de "manter a paz", o Conselho de Segurança das Nações Unidas o acusou de violar as leis internacionais e os Estados Unidos e a Europa o ameaçaram com sanções duríssimas. Eis o problema: pouco antes, no longo discurso em que explicou por que decidiu reconhecer a independência das regiões de Donetsk e Luhansk, o presidente russo avisou que sanções não deterão a Rússia...
Na noite desta segunda-feira, enquanto Vladimir Putin invadia a Ucrânia com tropas encarregadas da nobre tarefa de “manter a paz”, o Conselho de Segurança das Nações Unidas o acusou de violar as leis internacionais e os Estados Unidos e a Europa o ameaçaram com sanções duríssimas. Eis o problema: pouco antes, no longo discurso em que explicou por que decidiu reconhecer a independência das regiões de Donetsk e Luhansk, o presidente russo avisou que sanções não deterão a Rússia.
O desdém de Putin se deve, em parte, às enormes reservas em moeda estrangeira que a Rússia acumulou nos últimos oito anos (o equivalente a mais de um terço de seu PIB), e que lhe dão fôlego para suportar sanções. Outra razão é que países europeus como a Alemanha se tornaram tão dependentes do gás russo que é difícil imaginar que aceitem medidas drásticas como o bloqueio das exportações russas de combustíveis, que afetariam tanto Moscou quanto eles próprios.
Mas digamos que as ameaças funcionem e a Rússia dê um passo atrás. Nesse caso, a pergunta obrigatória será: até quando? Não só o estranho discurso de ontem, mas também um artigo divulgado em julho de 2021, e muitas outras declarações que pontuam a última década, mostram que Putin é impulsionado tanto por supostas ameaças imediatas quanto por convicções profundas sobre a história e a identidade russas. As primeiras questões podem ser abordadas pela diplomacia, mas é muito mais difícil “negociar” uma visão de mundo.
O objetivo imediato de Putin ao penetrar na Ucrânia é impedir que ela venha a fazer parte da Otan, uma organização militar. Isso, em tese, possibilitaria a instalação de mísseis ocidentais na fronteira com a Rússia. Mas esse propósito, que ele gostaria que fosse visto como “defensivo”, vem embrulhado em argumentos que retrocedem até a Idade Média, visitam o império russo do século XVIII, lamentam decisões geopolíticas tomadas pela União Soviética e, no final, não deixam dúvida sobre a intenção de restaurar uma “unidade histórica e espiritual” que se traduz, na prática, na submissão de Kiev a Moscou.
Há dois caminhos para que o ataque à autonomia da Ucrânia se aprofunde. O mais longo fomentaria a independência de províncias a oeste de Donetsk, passando pela Crimeia e chegando até Odessa. Esse plano existe desde 2014, quando a Crimeia foi anexada. Mais uma vez, os russos apresentam uma justificativa histórica para ocupar essa vasta faixa de terra que ladeia o Mar Negro: no século XVIII, ela constituiu a Nova Rússia, uma região dominada pela imperatriz Catarina, a Grande. O pretexto para a invasão seria proteger minorias de etnia e língua russas, exatamente como acontece neste momento no Donbas.
O segundo caminho é derrubar o governo ucraniano eleito democraticamente e instalar em seu lugar um regime fantoche. O modelo, neste caso, é a Belarus. Em setembro do ano passado, Putin se encontrou com o autocrata belarusso Alexander Lukashenko para assinar um conjunto de tratados de livre comércio que poderá facilmente evoluir para uma “união de estados”. A Belarus, aliás, não somente ocupa a mesma zona de transição entre Rússia e Europa, mas também faz parte daquela Rússia ancestral que Putin deseja reunificar. “Russos, ucranianos e belarussos são todos descendentes da antiga Rus, que foi o maior estado da Europa”, escreveu ele em 2021.
Esse é o caminho que o americano Robert Kagan, um dos mais perspicazes e pragmáticos analistas da política internacional, considera o mais provável: “Seria ruim para Putin deixar que a Ucrânia continue a existir como nação depois de todos os riscos de uma invasão. Essa é a receita para um conflito sem fim”, escreveu ele nesta segunda-feira no The Washington Post. “Depois que a Rússia instalar um governo no país, deve-se esperar que ele dê início a um processo de incorporação legal da Ucrânia, como já acontece na Belarus.”
Vinte anos atrás, Kagan usou a expressão “americanos são de Marte, europeus são de Vênus”, para descrever o completo divórcio entre as visões geopolíticas dos dois lados do Atlântico Norte. Talvez se possa adaptar a ideia para os dias de hoje: os russos, claramente, são de Marte. Europeus e americanos estão perdidos no espaço.
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