Pequena observação sobre o editorial de O Globo Pequena observação sobre o editorial de O Globo
O Antagonista

Pequena observação sobre o editorial de O Globo

avatar
Mario Sabino
4 minutos de leitura 19.10.2021 17:21 comentários
Opinião

Pequena observação sobre o editorial de O Globo

Em editorial, O Globo diz que "é um abuso acusar Bolsonaro por genocídio", como quer fazer Renan Calheiros, relator da CPI da Covid, em relação aos absurdos cometidos pelo presidente da República contra a população indígena, na condução do enfrentamento à pandemia. Para justificar o seu ponto de vista, o jornal recorre à definição canônica de "genocídio". Diz o editorial...

avatar
Mario Sabino
4 minutos de leitura 19.10.2021 17:21 comentários 0
Pequena observação sobre o editorial de O Globo
Foto: Adriano Machado/Crusoé

Em editorial, O Globo diz que “é um abuso acusar Bolsonaro por genocídio”, como quer fazer Renan Calheiros, relator da CPI da Covid, em relação aos absurdos cometidos pelo presidente da República contra a população indígena, na condução do enfrentamento à pandemia. Para justificar o seu ponto de vista, o jornal recorre à definição canônica de “genocídio”. Diz o editorial:

“Palavras não são inócuas — e ‘genocídio’ é uma daquelas que devem ser usadas com a maior parcimônia, sob pena de banalizar o mais hediondo dos crimes. Genocídio não é sinônimo de extermínio em massa. Todas as definições do crime — a da convenção das Nações Unidas sobre genocídio, subscrita pelo Brasil em dezembro de 1948, a da lei 2.889 de outubro de 1956 e a do artigo 6º do Estatuto de Roma que criou o Tribunal Penal Internacional (TPI) — o caracterizam como uma série de atos cometidos ‘com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso’.

O termo foi cunhado pelo jurista Raphael Lemkin em 1944 para descrever o crime cometido pelos nazistas contra judeus e outras minorias enquanto grupos. Distinguia-se dos crimes contra a humanidade, que descreviam atrocidades cometidas contra os indivíduos (como tortura, escravidão, deportação, violência sexual etc.). Lemkin, que perdera 49 familiares no Holocausto, acreditava que aquele não era um evento único. Os armênios haviam passado por tragédia semelhante, e a legislação precisava ter instrumentos para evitar que os mesmos horrores se repetissem com outros grupos.”

E continua o editorial:

“Apesar do esforço dele, e embora a palavra tenha sido citada pela primeira vez no Tribunal de Nuremberg, nenhum nazista foi condenado na ocasião por genocídio, apenas por crimes contra a humanidade. Genocídio sempre foi um crime difícil de comprovar nos tribunais, com raras condenações. Basta lembrar o Khmer Rouge, responsável pelo extermínio de 2 milhões no Camboja. Seus integrantes não foram condenados por genocídio, mas por crimes de guerra e contra a humanidade, pela dificuldade de demonstrar a intenção de exterminar um grupo específico. Em cortes internacionais, as condenações recentes mais relevantes foram contra o morticínio dos tutsis em Ruanda e o massacre de muçulmanos em Srebrenica, na Bósnia.”

De fato, não se deve baratear o termo, embora uma grande porção dos mais de 600 mil brasileiros mortos por Covid possa ser creditada na conta de Jair Bolsonaro, como resultado da sua política perversa de obter a “imunidade de rebanho natural“, ao custo de milhares de vidas de seus concidadãos — e que só não causou mais mortes, por causa da resistência da sociedade e de governos estaduais e municipais ao sociopata. Se isolarmos a população indígena nesse universo de vítimas, o crime fica ainda mais evidente. De um ponto de vista bem severo, portanto, Jair Bolsonaro quis destruir ativamente parte de um grupo nacional — os brasileiros — e, dentro dela, um grupo étnico específico: os indígenas. Ainda que seja difícil acusá-lo formalmente de ter praticado genocídio, não é despropositado chamá-lo de “genocida“, uma vez que direito e realidade dos fatos nem sempre andam juntos.

O meu ponto, no entanto, não é esse. É outro. O editorial de O Globo afirma que nenhum nazista foi condenado por genocídio no Tribunal de Nuremberg, por ser um crime de difícil comprovação. Não é bem assim. As provas eram abundantes contra os nazistas. Na verdade, os juízes soviéticos e americanos manobraram para que os crimes raciais evidentes perpetrados pelos capangas de Hitler contra judeus e ciganos, principalmente, ficassem de fora das condenações, substituindo-os pelos crimes contra a humanidade. Não quiseram ultrapassar a “color line”, porque o julgamento por crimes raciais poderia voltar-se contra eles. Explica-se: no caso dos soviéticos, para manter a ditadura stalinista, haviam sido cometidas atrocidades contra etnias e nacionalidades. No que se refere aos americanos, os negros continuavam a ser alvo de uma legislação discriminatória nos Estados Unidos, e esse fato vergonhoso poderia entrar nos holofotes internacionais, se o Tribunal de Nuremberg condenasse nazistas por crimes raciais. Optou-se, então, pela generalidade.

Palavras não são inócuas, assim como os julgamentos sobre genocídios não deixam de ser políticos.

PS: a editora Topbooks acaba de lançar Me Odeie pelos Motivos Certos, em versão impressa.  Quem quiser adquirir o livro, com desconto, pode clicar no link. Obrigado aos que já compraram e agradeço antecipadamente aos que vierem a comprar.

  • Mais lidas
  • Mais comentadas
  • Últimas notícias
1

Ellen DeGeneres deixa EUA após escândalos e reeleição de Trump

Visualizar notícia
2

"Sua hora vai chegar", diz Bretas a Paes

Visualizar notícia
3

Rafinha Bastos ironiza Globo por vídeo de jornalistas como atores

Visualizar notícia
4

Como Cid convenceu Moraes?

Visualizar notícia
5

Crusoé: Cerco a Bolsonaro

Visualizar notícia
6

Por que Luiz Eduardo Ramos ficou de fora da trama golpista?

Visualizar notícia
7

E agora, Bolsonaro? As cenas dos próximos capítulos

Visualizar notícia
8

PF indiciou padre em caso de golpismo

Visualizar notícia
9

Jojo Todynho e Luciano Hang, juntos para cancelar (preços altos)

Visualizar notícia
10

Moro defende Bretas contra Paes: “Delinquentes são seus amigos”

Visualizar notícia
1

‘Queimadas do amor’: Toffoli é internado com inflamação no pulmão

Visualizar notícia
2

Sim, Dino assumiu a presidência

Visualizar notícia
3

O pedido de desculpas de Pablo Marçal a Tabata Amaral

Visualizar notícia
4

"Só falta ocuparem nossos gabinetes", diz senador sobre ministros do Supremo

Visualizar notícia
5

Explosões em dispositivos eletrônicos ferem mais de 2.500 no Líbano

Visualizar notícia
6

Datena a Marçal: “Eu não bato em covarde duas vezes”; haja testosterona

Visualizar notícia
7

Governo prepara anúncio de medidas para conter queimadas

Visualizar notícia
8

Crusoé: Missão da ONU conclui que Maduro adotou repressão "sem precedentes"

Visualizar notícia
9

Cadeirada de Datena representa ápice da baixaria nos debates em São Paulo

Visualizar notícia
10

Deputado apresenta PL Pablo Marçal, para conter agressões em debates

Visualizar notícia
1

Chefe da Jaguar rebate críticas: "ódio vil"

Visualizar notícia
2

"Era sempre uma competição: você ou eu", diz Merkel sobre Trump

Visualizar notícia
3

Crusoé: Irã já possui material para fabricar quatro bombas atômicas

Visualizar notícia
4

Melhores casas de apostas - Sites confiáveis em 2024

Visualizar notícia
5

Rafinha Bastos ironiza Globo por vídeo de jornalistas como atores

Visualizar notícia
6

Crusoé: A dancinha do trumpismo

Visualizar notícia
7

Bolsonaro sabia de plano para ‘neutralizar’ Lula e Moraes, disse Cid em depoimento

Visualizar notícia
8

Crusoé: As intenções de Putin ao ameaçar atacar os EUA

Visualizar notícia
9

Texas vota pela inclusão de lições bíblicas nas escolas públicas

Visualizar notícia
10

Jojo Todynho e Luciano Hang, juntos para cancelar (preços altos)

Visualizar notícia

Assine nossa newsletter

Inscreva-se e receba o conteúdo do O Antagonista em primeira mão!

Tags relacionadas

artigos CPI da Covid genocídio Jair Bolsonaro Mario Sabino O Antagonista O Globo Pandemia Renan Calheiros
< Notícia Anterior

Haddad, o debate tucano e a 'promoção' de O Globo

19.10.2021 00:00 4 minutos de leitura
Próxima notícia >

Bolsa cai 3,28% e dólar sobe 1,33% com proposta de Auxílio Brasil fora do teto de gastos

19.10.2021 00:00 4 minutos de leitura
avatar

Mario Sabino

Mario Sabino é jornalista, escritor e sócio-fundador de O Antagonista. Escreve sobre política e cultura. Foi redator-chefe da revista Veja.

Suas redes

Os comentários não representam a opinião do site; a responsabilidade pelo conteúdo postado é do autor da mensagem.

Comentários (0)

Torne-se um assinante para comentar

Notícias relacionadas

A novela do corte de gastos do governo Lula: afinal, sai ou não sai?

A novela do corte de gastos do governo Lula: afinal, sai ou não sai?

Madeleine Lacsko Visualizar notícia
Relação do Brasil com a China de Xi Jinping alcança um novo patamar

Relação do Brasil com a China de Xi Jinping alcança um novo patamar

Madeleine Lacsko Visualizar notícia
Janja se junta a Felipe Neto para xingar Elon Musk: passou dos limites?

Janja se junta a Felipe Neto para xingar Elon Musk: passou dos limites?

Madeleine Lacsko Visualizar notícia
Janjapalooza: um escárnio que revela a desconexão da esquerda com as mulheres

Janjapalooza: um escárnio que revela a desconexão da esquerda com as mulheres

Madeleine Lacsko Visualizar notícia
Icone casa

Seja nosso assinante

E tenha acesso exclusivo aos nossos conteúdos

Apoie o jornalismo independente. Assine O Antagonista e a Revista Crusoé.