A “democracia” em que turistas são mortos por errarem o caminho
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A “democracia” em que turistas são mortos por errarem o caminho

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Felipe Moura Brasil
6 minutos de leitura 14.01.2025 16:23 comentários
Análise

A “democracia” em que turistas são mortos por errarem o caminho

O debate público no Brasil gira em torno de autoproclamados defensores do regime democrático, enquanto facções armadas violam diariamente a soberania nacional

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Felipe Moura Brasil
6 minutos de leitura 14.01.2025 16:23 comentários 1
A “democracia” em que turistas são mortos por errarem o caminho
Divulgação

Perder-se também é caminho”, escreveu Clarice Lispector em seu terceiro romance, “A cidade sitiada” (Editora A Noite, 1949), cuja história se passa no subúrbio de São Geraldo, no Rio de Janeiro, na década de 1920. Um século depois, perder-se no Rio de Janeiro também é caminho, sim, mas para a cova.

A morte na segunda-feira, 13 de janeiro de 2025, do argentino Gastón Fernando Burlón, de 51 anos, que estava internado desde 12 de dezembro, quando foi baleado na cabeça e no tórax ao entrar por engano na comunidade do Escondidinho, em Santa Teresa, no Centro, soma-se à morte em 28 de dezembro da brasileira Diely da Silva, de 34 anos, baleada no pescoço após o motorista do carro de aplicativo em que ela estava, Anderson Pinheiro, entrar por engano na comunidade do Fontela, em Vargem Pequena, na Zona Oeste. Anderson Pinheiro, de 34 anos, é natural de Pernambuco e só havia chegado ao Rio em agosto para exercer a função. Ele foi ferido nas costas pela mesma bala que atravessou o pescoço de Diely, mas recebeu alta no dia seguinte, 29 de dezembro.

Gastón Fernando Burlón havia sido secretário de Turismo de Bariloche, na Argentina, onde vinha atuando no setor como empresário. Ele ia visitar o Cristo Redentor com a mulher e dois filhos quando o GPS direcionou o carro com a família para o Morro dos Prazeres.

Diely da Silva, nascida na cidade de Candiba, na Bahia, trabalhava como gerente contábil em Jundiaí, no interior de São Paulo. Ela viajou ao Rio para passar o segundo Réveillon consecutivo na cidade e, acompanhada de uma amiga, pediu uma corrida do Recreio dos Bandeirantes, na Zona Oeste, para a Gávea, na Zona Sul, pouco depois das 22h. Em suas redes sociais, havia fotos em que aparece aproveitando a praia e um restaurante.

O Comando Vermelho, facção criminosa que controla as favelas onde ocorreram os assassinatos de ambos os turistas, impõe a motoristas que trafeguem nelas com os vidros abaixados, luz interna acesa e o pisca-alerta ligado, a fim de se distinguirem de potenciais invasores que sejam membros de facções rivais. Qualquer engano, portanto, pode ser mortal.

O autor dos disparos contra Gastón, segundo duas testemunhas, foi Sandro da Silva Vicente, o “Sandrinho”. Ele tem 20 passagens pela polícia, sendo 13 quando era menor de idade e 7 depois de adulto, a maioria por assalto a mão armada. Dos outros quatro suspeitos de envolvimento no ataque, três foram identificados como Cláudio Augusto dos Santos, o “Jiló”; Tiago de Oliveira, o “TG“; e Raphael Corrêa Pontes, o De Lara.

Em 15 de dezembro, um domingo, o juiz plantonista Orlando Eliazaro Feitosa, do Tribunal de Justiça do Rio, decidiu não decretar a prisão de Sandro, alegando que não havia “urgência qualificada” que fundamentasse “a necessidade de intervenção do Juízo de plantão”. A decisão de retardar em 24 horas a análise, turbinando o risco de fuga, foi alvo de críticas do ex-capitão do Bope e roteirista dos filmes “Tropa de elite” 1 e 2, Rodrigo Pimentel, e o caso virou pauta da minha conversa com ele no Podcast OA!, gravada em 19 de dezembro e exibida no dia 30, no canal do portal O Antagonista, no YouTube. Em 16 de dezembro, uma segunda-feira, a juíza Alessandra da Rocha Lima Roidis decretou a prisão temporária de Sandro, mas até o momento da publicação deste texto, quase um mês depois, ele não havia sido encontrado.

Já o autor do disparo contra Diely foi um adolescente de 16 anos, segunda a polícia. Com a repercussão do caso, ele fugiu e se abrigou no Complexo da Penha por ordem dos chefes da facção, mas foi apreendido em 3 de janeiro pela Delegacia de Homicídios da Capital (DHC). Contra ele, já havia pelo menos um mandado de busca e apreensão.

Os casos de Gastón e Diely são puro suco de Brasil, um país em que o debate público gira em torno de autoproclamados defensores da democracia, enquanto facções armadas violam diariamente a soberania nacional, cercando com barricadas, impedindo o direito de ir e vir, e impondo suas próprias leis em áreas significativas do território; criminosos reincidentes a seu serviço seguem livres para delinquir, extorquir e matar; e o Estado não vê urgência em combater a impunidade geral e garantir a segurança de civis inocentes.

Em 2020, um mapeamento feito por pesquisadores da Universidade Federal Fluminense (UFF) e de outros grupos mostrou que 4,4 milhões de pessoas vivem em 165 bairros da Região Metropolitana do Rio marcados por disputas ou convivência entre traficantes de drogas e milicianos, além dos 2,6 milhões em 52 bairros da capital sob a mesma condição.

Eu nunca vi o [Ricardo] Lewandowski até hoje falar sobre barricada”, disse Rodrigo Pimentel no Podcast OA!, criticando o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal que virou ministro da Justiça e Segurança Pública do governo Lula. “Isso deveria ser um assunto de segurança nacional, de soberania”, acrescentou o ex-capitão, detalhando a extorsão de moradores, obrigados a pagar por bujões de gás e outros serviços das facções, já que elas impedem o acesso local de serviços públicos e privados. “Isso é muito sério, porque esse dinheiro vai ser usado para comprar fuzis. A Polícia Federal certamente não está preocupada com esse assunto”, completou Pimentel, sem deixar de criticar a sinalização municipal precária em torno de áreas de guerra e risco.

De resto, governo Lula e STF só tomam medidas em nome do combate à violência policial e do garantismo, e o governador do Rio, Cláudio Castro, contesta várias delas, posando de defensor do combate ao crime organizado, jamais deposto. Enquanto isso, turistas, entre outros cidadãos, morrem fuzilados no entorno dos cartões-postais.

Em sua crônica “A comunicação muda”, Clarice Lispector reconheceu “A cidade sitiada” como “um de meus livros menos gostado”, mas revelou sua enorme gratidão a ele, porque o esforço de escrevê-lo a ocupava e a salvava da monotonia da cidade de Berna, na Suíça, onde morou com o marido a partir de 1946. Talvez o que falte ao Brasil atualmente seja isso: um pouco mais de monotonia e tédio suíços, para que todos, em vez de balas, ganhem apenas experiência e literatura, perdendo-se vivos pelo caminho.

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Felipe Moura Brasil

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Comentários (1)

Carlos Renato Cardoso Da Costa

14.01.2025 18:04

Impunidade tem consequências trágicas, seja no ladrão que é libertado e acaba cometendo um assassinato, seja um corrupto que acaba na cadeira da presidência da república.


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