Quando o pensamento miserável encontra guarida na Justiça
Já me é revoltante o suficiente ter de aturar a patrulha e as agressões de grupos identitários radicais
Em um país com tanta insegurança jurídica e tamanha assimetria entre o (não raro) abuso de poder do judiciário e os direitos constitucionais (para inglês ver) do cidadão comum, não chega a ser surpresa, ainda que beirando o surrealismo, a atitude do Ministério Público da Bahia em não apenas acolher a denúncia, mas instaurar um inquérito civil em desfavor da cantora e compositora Claudia Leitte – ô mania insuportável essa de dobrar as consoantes! – por “intolerância religiosa e racismo”.
O motivo – pasmem! – da denúncia feita por uma dessas ONGs da vida, um tal Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras (Idafro), que, espero, não me denuncie também por intolerância religiosa e racismo, por eu estar lhe citando de forma pouco cortês, e acatado pelo MP baiano, é o fato de a cantora, por motivos pessoais, ter alterado um trecho de uma música (Caranguejo), e trocado o substantivo próprio, Iemanjá, por outro, Yeshua (Cristo), em linha com sua religião (evangélica).
O leitor atento deve estar se perguntando: onde diabos essa moça incorreu em intolerância religiosa e racismo para ser denunciada e investigada? Bem, nem ela, nem você, leitor atento, nem eu ou qualquer ser vivo deste planeta será capaz de responder e apontar o crime, a não ser que movido por muita má-fé intelectual, muita vontade de lacração, muita sanha autoritária identitária e muita, mas muita falta do que fazer de útil na vida. Ao que parece, é o caso dos denunciantes e do MPBA.
Direitos e deveres
Obras de arte, livros, letras de música, desenhos, projetos de arquitetura, enfim, há um campo enorme de “propriedades intelectuais”, regidas justamente por essa área do direito e das leis. Tudo o que vai acima e não se insere no conceito de propriedade, é tido como “domínio público”. Portanto, ou é garantido ao autor o direito à propriedade de sua criação ou não cabe, nem a ele nem a ninguém, tal reserva de domínio. No caso, tenho certeza, não é a ONG a proprietária da obra intelectual.
Não conheço a música e nem entendo de Axé, mas posso afirmar, com absoluta certeza, que se a autora é a própria Cláudia Leitte – com dois Ts -, ela não deve satisfação nem à ONG nem à ninguém por ter alterado a letra. Muito menos ao Ministério Público da Bahia. Caso a autoria seja de terceiro, aí, sim, talvez lhe assista algum tipo de direito – se assim desejar – por conta da alteração de uma única palavra (sem licença para tal). Mas seria caso de Justiça Comum, e jamais, Criminal.
Agora, leiam isso: “Essa brancura cristã da artista utiliza-se da nossa linguagem, significados e comportamentos estéticos como estratégia de dominação, conforme aborda Doutor Rodney William. Quem deu esse axé para Leite? Nós. Ela até recebeu o título de “negalôra!!”. É o trecho de uma publicação de Carla Akotirene, pesquisadora e escritora, especialista em feminismo negro no Brasil, que chamou Claudia Leitte de, nada mais, nada menos, que “Exploradora nata dos bens culturais“, segundo informa o G1.
Justiça seletiva
Eu pergunto: se para o MPBA há motivo para a instauração de inquérito em desfavor da cantora, apenas e tão somente porque mudou Iemanjá para Yeshua, exclusivamente por sua própria religião, “brancura cristã”, acaso, é elogio, é afago, é carinho, ou a mais pura expressão de preconceito racial e religioso? O mesmo G1, aliás, também reproduziu a fala de Bárbara Carine, professora e escritora, que igualmente investiu contra a cantora baiana, pelos mesmos motivos:
“É realmente revoltante o racismo religioso, eu diria até um terrorismo religioso, que essas pessoas instauram na nossa cultura. É extremamente revoltante o lucro com a demonização dessa cultura, porque é uma pessoa que vive do axé“. Caramba! Terrorismo religioso? Claudia Leitte agora é uma “mulher-bomba” se explodindo em templo de candomblé – ou de umbanda; eu não entendo bem a diferença – porque odeia os orixás e seus fieis seguidores? Na boa, às vezes fico pensando se certas coisas são mesmo para valer ou apenas “jogo de cena”.
Já me é revoltante o suficiente ter de aturar a patrulha e as agressões de grupos identitários radicais (e há os que não sejam?), mas quando tal intolerância encontra guarida na Justiça, confesso, beiro o desespero, especialmente após tantas declarações ofensivas e preconceituosas contra a cantora, jamais questionadas por ONG alguma ou MP algum. Encerro fazendo “propaganda” em causa própria: não deixem de ler o excepcional artigo de Duda Teixeira, aqui na Crusoé, a respeito do assunto.
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