Alexandre Soares Silva para Crusoé: Entre tio Paulo e tio França
O bolsonarismo foi a ilusão política de que os tios tinham poder
No Brasil, se você é um tio, você tem dois destinos possíveis: virar um tio Paulo, ou virar um tio França.
Por tio quero dizer não tanto o irmão de um dos seus pais — dificilmente você será o irmão de um dos seus pais — mas um tio no sentido espiritual, um Tiozão de Churrasco; um homem, ou mulher (pois mulheres também podem ser tiozões espirituais) de uma certa idade, com um certo nível de patriotismo, com um certo nível de desgosto com o Estado brasileiro, com o PT e com o STF, e com um certo nível de ingenuidade e simplicidade.
Se você é essa pessoa, e essas pessoas são muitos milhões, lamento dizer que nas condições atuais ou você virará um tio Paulo, ou virará um tio França.
Já que escrevo, como todos os clássicos, para ser lido no futuro distante, explico quem foram esses dois tios que marcaram o ano de 2024.
O affair Tio Paulo foi o caso de um cadáver que foi levado de cadeira de rodas pela sobrinha para um banco em Bangu; onde mais, sim, Bangu.
Ela fingia que ele estava vivo, falava com ele, fingia que ouvia o que ele falava de volta, e queria que o banco fizesse um empréstimo em nome dele.
E o tio França era um sujeito de expressão extremamente simpática e abilolada, que num crescendo de obsessão política acabou se explodindo com fogos de artifício (até ler “Salvar o Fogo” deve ser menos doloroso) na frente do STF.
É fácil ver que estamos criando exércitos de tios Paulos e de tios Franças. Talvez tios Franças menos proativos, digamos, que o original. Tio Franças que só sonham com explosões, que só resmungam em caps lock desanimados. Esperemos que seja o caso. Mas tios Franças mesmo assim.
Vejam o Bolsonaro, por exemplo. É até um clichê dizer que ele é um tiozão. A primeira vez que vi o Bolsonaro, fiz um diagnóstico rápido: é um tio do churrasco, um tio de padaria.
Nem sabia eu que milhões de brasileiros, e até pessoas pouco perceptivas como jornalistas, estavam fazendo o mesmo diagnóstico naquele momento. E era verdade. Ele era todos os tios de churrasco encarnado num corpo só.
Talvez um pouco mais truculento que um tio do churrasco mediano; talvez um tio do táxi, desses que falam o tempo todo em cancelar CPFs. Mas todas essas são vertentes levemente diferentes de um gênero só, que é o tiozão.
O bolsonarismo foi a ilusão política de que os tios tinham poder.
Os tios perceberam de repente que eram muitos; e agora podiam se comunicar diretamente uns com os outros devido à invenção de um aplicativo de comunicação de tios.
Eita, pensaram — e se quem governar for nóis? Ou um cara que nem nóis? É nóis então.
Um governo de tios.
Eu mesmo não me sinto muito tio, apesar da idade de tio, mas torcia por eles em 2018 porque eles são geralmente muito mais benignos e sensatos que todos os outros grupos políticos brasileiros (intelectuais, jovens, ativistas, associações de advogados etc).
Sem contar que são mais patriotas.
São o único grupo do país que gosta pelo menos um pouco do país em que nasceram.
Os outros grupos políticos querem governar sem gostar do que governam, ou de quem governam — e eu entendo esse impulso, como não? Mas ele não é muito desejável num governante.
E eis que Bolsonaro teve realmente um desses dois destinos que são possíveis para os tios.
Muitas pessoas queriam que ele fosse um Tio França mais eficiente que o tio França, mas não, o destino reservou a ele outro papel: o papel de tio Paulo, o de pessoa politicamente morta, até mesmo simbolicamente morta, sendo arrastado por aí por pessoas que ainda querem se beneficiar um pouco com o que lhe sobra de capital político.
Mas há um terceiro destino possível para os tiozões, como estamos vendo agora.
O proverbial jovencito woke, que escreve em todos os Natais, no Twitter ou TikTok, falando do quanto detesta alguém mais velho da sua família, terceirizou sua raiva de tios para o Alexandre de Moraes, que é um rábido carrasco de tios.
E graças ao poder de Alexandre de Moraes…
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