Por que o Ministério da Saúde está espalhando fake news?
Ao adotar práticas negacionistas e preconceituosas, a pasta mina sua credibilidade e expõe a falta de alinhamento interno do governo
O Ministério da Saúde, que deveria zelar pela saúde pública e promover campanhas baseadas em ciência, está gastando dinheiro público para disseminar desinformação. Não se trata de um erro qualquer. O problema se agrava quando essa desinformação carrega preconceito contra povos africanos e indígenas, reforçando estereótipos racistas que deveriam ser combatidos, não reproduzidos.
A polêmica gira em torno de uma cartilha lançada pelo Ministério que propõe eliminar expressões consideradas racistas do vocabulário brasileiro. A ideia não passa de um festival de picaretagem linguística.
A maior pérola é a tentativa de banir apalavra “nhaca”. Segundo a publicação do Ministério da Saúde, seria um termo ofensivo de origem africana, usado para associar o povo da ilha de Inhaca, em Moçambique, a algo “fedido”. O problema é que essa história não tem qualquer base factual, é a mais pura mentira.
Recorro a Rafael Rigolon, do perfil Nomes Científicos, para explicar melhor. “De fato, Moçambique, país da costa Leste da África, tem uma ilha de 42 km² chamada Ilha de Inhaca. O nome é antigo, vindo da dinastia Nhaca, uma família de reis da qual se destacou Tsonga Nhaca, no século XVI. Foi nessa época (1550) que os primeiros portugueses desembarcaram na ilha, referindo-se desde então, em seus textos, às ‘terras do inhaca’. De lá para cá, as grafias variaram entre Nhaca, Nyaka, Inhaca e Unhaca. Em dicionários atuais, consta que, na língua portuguesa de Moçambique, inhaca significa ‘rei, chefe supremo’.”, publicou em seu perfil.
A região nunca foi colonizada ou chamada de “fedida” pelos portugueses. Pelo contrário, é um destino de resorts de luxo até hoje. Inventar uma origem pejorativa para o termo, sob o pretexto de combater racismo, é um desserviço à luta antirracista e um reflexo de preconceito camuflado. Essa visão reducionista de que tudo que vem da África carrega conotações negativas é sintomática de uma elite que ainda enxerga o continente como uma abstração homogênea e inferior.
Se isso já não fosse patético o suficiente, o Ministério da Saúde também apaga a contribuição dos povos indígenas para a formação da língua portuguesa no Brasil. A palavra “nhaca”, de fato, não vem da África, mas do tupi. Deriva de y’akwa, que significa mau odor e virou os sufixos aca e aco. Está relacionada a outras palavras do português brasileiro, como “suvaco” (axila) e “cavaco” (buraco fedido). A omissão dessa origem é sintoma do apagamento histórico e cultural dos povos originários, que sofrem mais um golpe. Estranho que venha justamente do governo governo que prometeu valorizá-los.
Como justificar que, enquanto vacinas são perdidas por vencimento em volumes maiores do que no governo anterior, o Ministério da Saúde dedique recursos públicos para um projeto de “etimologia freestyle”? A ideia de transformar etimologias inventadas em material didático não apenas desinforma, mas também serve para reforçar preconceitos enquanto finge combater. É um mercado lucrativo, que atrai cada vez mais pilantras e não pode ser financiado com dinheiro público.
E onde estão as vozes que deveriam denunciar esse absurdo dentro do próprio governo? Sônia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas, e Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial, permanecem em silêncio. São ministras de pastas criadas para defender os direitos de povos historicamente marginalizados, mas que parecem incapazes de intervir nesse caso. Isso levanta uma pergunta incômoda: qual a utilidade desses ministérios se não conseguem agir nem dentro de seu próprio governo?
Ao adotar práticas negacionistas e preconceituosas, o Ministério da Saúde mina sua credibilidade e expõe a falta de alinhamento interno do governo. Como um ministério que deveria estar preocupado em salvar vidas, especialmente em um país onde a vacinação enfrenta desafios imensos, gasta tempo e recursos em picaretagem pseudocientífica?
Se o objetivo fosse combater o racismo, o governo poderia começar pelo básico: investir em educação de qualidade, reconhecer as contribuições reais dos povos indígenas e africanos para a formação da nossa cultura e, acima de tudo, garantir que a saúde pública seja tratada como prioridade. Afinal, gastar dinheiro público em fake news não é apenas irresponsável, é também um desrespeito com a sociedade brasileira.
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