Leonardo Barreto na Crusoé: O pesar do herói
Ele é um obstinado: não tem casa, família, moral ou compaixão dos outros
Fernão de Magalhães (1480-1521), no instante seguinte ao ter certeza de que havia encontrado a ligação entre o Atlântico e o Pacífico, oceano que ele mesmo batizaria, tinha que tomar uma decisão: lançar-se ao desconhecido mesmo estando em condições precárias ou retornar para casa, já com fama garantida, mas sem conseguir cumprir seu objetivo principal de chegar às Índias navegando para o Oeste?
Até achar o estreito no final da Patagônia, sua expedição já havia perdido um navio naufragado e outro – o maior da frota – sequestrado por desertores. A duração das suas provisões era incerta e, no período em que ficou acampado esperando o inverno do hemisfério sul abrandar, enfrentou um motim que terminou com dois capitães espanhóis nobres e próximos ao rei Carlos V presos e executados, piorando assim em um constante estado de desconfiança e tensão com a tripulação, agravado pelo fato de ele ser português.
No momento da decisão, Magalhães já tinha ciência do seu feito. Ela havia chegado onde ninguém esteve. Tinha reescrito o mapa do mundo e poderia voltar para sua família recém-constituída com reputação suficiente para viver com segurança ou liderar outra missão mais bem equipado.
Sem ter nada a favor de seguir e um oceano (literalmente) de incerteza à frente, “um mar tão vasto que a mente humana mal pode compreendê-lo”, ele levantou âncora, içou vela e se lançou para encontrar seu objetivo maior “nem que fosse preciso comer o couro que cobria o mastro para proteger as cordas”, o que de fato fizeram após deixá-lo de molho por quatro dias no mar para amolecê-lo. Era isso e a caça de ratos, transformados em iguarias pela fome.
Para quem analisa um grande feito, é natural falar da sua transcendência, condensada no verso de Fernando Pessoa que “navegar é preciso, viver não é preciso”. Essa percepção torna a vida mero combustível de coisas grandes, que alcançam toda a humanidade. O que é a família, uma vida confortável e a criação dos filhos diante da possibilidade de batizar um continente, de descobrir um novo mundo ou de entrar para a História?
Antes de Magalhães, esse dilema já era enfrentado pelos gregos. A fórmula da eternidade era realizar obras dignas de serem narradas pelo poeta e nenhuma delas podia acontecer dentro dos limites do lar. Aquele que não saía de casa não passava de um idiota (aí a origem do termo).
Mas, nem tudo é poesia. Há miséria. O almirante arrastou consigo muitas almas que permaneceram anônimas. Dos 250 tripulantes, apenas 18 completaram a jornada, retornado ao porto de onde partiram. Nem tudo é transcendência, portanto, pois há nos heróis uma disposição amoral de sacrificar também outros se necessário. A circum-navegação foi grandiosa, mas também brutal.
O que nos traz de volta a Magalhães, em pé na proa da nau Trinidad, encarando o Pacífico, na mais profunda solidão. O herói é um obstinado. Não tem casa, família, moral ou compaixão e precisa morrer na terra dos ordinários para renascer em outra dimensão da humanidade.
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