A censura de 20 milhões de brasileiros e a falta da Lava Toga
A democracia estava bem mais protegida quando ninguém falava em nome dela
Com a decisão de Alexandre de Moraes (foto) de suspender o X no Brasil, vinte milhões de brasileiros perderam neste sábado, 31 de agosto de 2024, acesso a outros milhões de contatos feitos e conteúdos produzidos ao longo de até 16 anos, bem como ao ambiente que centraliza o debate público mundial, com fontes primárias de pronunciamento de autoridades e profissionais de quase todos os países e áreas.
O impacto para o jornalismo é gigantesco. O X havia se convertido na ferramenta mais ágil de monitoramento em tempo real de informações locais, nacionais e internacionais, de modo que, sem ele, a sociedade também fica prejudicada pela perda de velocidade e qualidade na cobertura dos fatos, em pleno momento de eleições municipais no país, presidenciais nos EUA, fraude eleitoral na Venezuela, guerra da Rússia contra a Ucrânia, e reação militar de Israel a grupos terroristas do Oriente Médio, entre outros acontecimentos de amplo interesse.
O que houve entre Moraes e Musk?
Desde abril, o dono do X, Elon Musk, acusa Moraes de impor à rede social a violação das leis brasileiras com ordens de censura. Quando o ministro do STF ameaçou, em 16 de agosto, a representante jurídica, Rachel de Oliveira, com “DECRETAÇÃO DE PRISÃO por desobediência à determinação judicial” caso suas ordens não fossem cumpridas, Musk anunciou o fechamento do escritório brasileiro. Intimado pelo STF no próprio X a indicar um representante legal, o empresário confirmou a recusa em nomear alguém para ser punido.
Se algo fica claro nas alegações de Moraes para justificar a retirada do ar da rede social depois disso, é que o X se recusou a proceder “ao bloqueio dos canais/perfis/contas” de determinados ativistas bolsonaristas sem foro privilegiado no STF, “bem como de quaisquer grupos que sejam administrados pelos usuários seus, inclusive bloqueando eventuais monetizações em curso relativas aos mencionados perfis”. Como ilustram as decisões divulgadas pelo perfil Alexandre Files, criado pelo X neste sábado, o ministro do Supremo, não mais do TSE, não ordenava remoção de conteúdos específicos julgados como violadores da lei em casos transitados em julgado, mas de perfis inteiros, fora do período eleitoral, em processos sigilosos contra alvos nem sequer condenados ou denunciados.
De extrapolação em extrapolação chancelada por seus colegas de Corte, Moraes tornou o cumprimento de suas ordens, no mínimo, objeto de discussão internacional sobre os limites da obediência civil a autoridades que se confundem com “o ordenamento jurídico” de um país enquanto o distorcem sistematicamente, como no caso do Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela, que validou a fraude de outro censor do X, o ditador Nicolás Maduro.
Como chegamos até aqui?
A democracia estava bem mais protegida quando ninguém falava em nome dela. Foi assim até 2019, quando Dias Toffoli se fez de regime democrático sob ameaça virtual de ativistas bolsonaristas; deu uma interpretação elástica ao artigo 43 do regime interno do STF, que só autoriza abertura de inquérito em caso de infração penal cometida “na sede ou dependência do tribunal”; contornou o Ministério Público então comandado por Augusto Aras, o indicado de Jair Bolsonaro à Procuradoria-Geral da República que ajudava o sistema a retaliar a Lava Jato, mas o incomodava pela mesma complacência com o bolsonarismo; abriu de ofício o inquérito das fake news, sem objeto nem prazo definidos; e entregou a relatoria, sem sorteio, para o xerife Alexandre de Moraes.
De lá até a censura de 20 milhões de brasileiros usuários do X, com uma canetada individual do relator-geral da República em 2024, foi necessária a cumplicidade de muita gente com rabo preso, a começar pelo próprio Bolsonaro, que, não tendo convencido o então ministro da Justiça, Sergio Moro, a sabotar o combate à corrupção para blindar seu filho Flávio, investigado à época por peculato, não só indicou o petista Aras para levar adiante o estelionato eleitoral, como fez um “acordo de engajamento” com Toffoli, apontado por Crusoé.
Em julho de 2019, o ministro do STF aproveitou um pedido da defesa de Flávio e paralisou todas as investigações do país baseadas em dados do Coaf (Centro de Controle de Atividades Financeiras), como a que atingia o filho mais velho do então presidente, e também da Receita Federal, como a que envolvia as esposas de Toffoli e Gilmar Mendes. Enquanto essas investigações estavam paralisadas, à espera de análise no plenário da Corte em novembro, dois episódios ilustrativos da frente ampla pela impunidade aconteceram: Moraes encerrou de vez a apuração da Receita, blindando ambos os colegas e suspendendo dois auditores fiscais; e a família Bolsonaro atuou para barrar a iniciativa constitucional que poderia conter na raiz os abusos do Supremo: a CPI da Lava Toga, cujo requerimento de criação chegou a alcançar o número mínimo de 27 assinaturas e previa que a comissão investigasse Toffoli pela abertura do inquérito das fake news, ali contestada.
Os então senadores Major Olímpio e Selma Arruda, que haviam apoiado Jair Bolsonaro em 2018, relataram em diversas entrevistas a pressão feita por Flávio, em telefonemas hostis, com palavrões, pela retirada de assinaturas, e apontaram que a colega do então PSL Soraya Tronicke também havia sido pressionada, como ela, mais tarde, igualmente relatou em público.
“Vocês querem me foder!”, disse Flávio, segundo Selma. “Eu também fui pressionada aos berros, para que eu retirasse imediatamente a minha assinatura da CPI, porque eu ia ferrar com ele, para não usar outros termos”, confirmou Soraya. Olimpio contou ao Papo Antagonista que as duas senadoras telefonaram “assustadas” após receberem as ligações do 01 “esculhambando com elas” e que o próprio Jair Bolsonaro já havia conversado com ele sobre o tema.
“Dias antes, o presidente tinha me chamado pra conversar comigo, não foi nem no gabinete, foi conversa dentro do alojamento dele mesmo, e logicamente me pediu, primeiro, que eu saísse do grupo ‘Muda Senado’; depois, que eu parasse com esse negócio, porque eu tinha feito um pedido de impeachment do Toffoli e também eu era um dos que encabeçavam, junto com o Alessandro [Vieira], a CPI da Lava Toga.”
Olimpio descreveu essa primeira conversa como “mais amistosa” e disse ter respondido a Bolsonaro que “a única coisa que eu não posso dar é justamente o que é a nossa crença”, de que as ilegalidades têm de ser combatidas.
“Eu achei até que tinha ficado muito bem claro e esclarecido”, contou o então senador, mas, “no dia 21” de agosto de 2019, “as duas senadoras entraram em contato comigo desesperadas” e, “quando o Flávio falou comigo, também já foi aos gritos e aos berros”. Olimpio respondeu: “Peraí, calma aí que não é assim, não! Quer se portar como bandido, vai ter a resposta devida.”
Ele prosseguiu o relato: “E de repente o pai [Jair Bolsonaro] – eu não sei se estava acompanhando a ligação [pelo viva-voz, sim, detalharia Soraya], mas de repente – assumiu o telefone, e também quis me cobrar de todas as formas, passou a dizer impropérios e eu não sou santo, disse os impropérios [também]. Impropérios são palavrões. Ou bate-boca. Então foi exatamente isso que aconteceu.”
Segundo Olimpio, “tem gente que se intimida com príncipe herdeiro”, mas ele reagiu ao filho de Bolsonaro dizendo “ô moleque, ninguém tá se intimidando com nada, não”. “E vou continuar, sim, apoiando iniciativas como a CPI da Lava Toga e com muito mais contundência, porque eu vi o desespero estampado [em razão] do que poderia ser uma CPI daquela natureza dentre esses acordos do submundo traçados. Muitas pessoas precisam – e ao longo do tempo vão – tomar conhecimento de fatos que são deprimentes para todo mundo que sonhou com uma mudança de verdade no Brasil”, alertou.
Olímpio já havia dito que a sabotagem da Lava Toga por Bolsonaro levou à “ruptura” da relação entre eles, porque foi “uma coisa de caráter pessoal para proteção de filhos”. Na época, os três senadores do então partido de Bolsonaro resistiram à pressão e mantiveram as assinaturas no requerimento, mas Jair e Flávio convenceram o vice-líder do então governo no Senado, o piauiense Elmano Férrer, do Podemos, a retirar a dele, alegando que a CPI causaria um “tumulto” entre os Poderes.
“No meu entendimento prejudicaria todo esse esforço das reformas encaminhadas pelo Poder Executivo para o Congresso Nacional”, disse o senador, encobrindo as motivações em jogo. Férrer migrou para o PP e ficou bem servido de emendas liberadas pelo governo para o Piauí, chegando a gravar vídeo com Bolsonaro e Ciro Nogueira para anunciar um “pacotão” que envolvia a duplicação da BR-316 e obras na BR-343, num total de R$ 33,8 milhões em recursos reservados no Orçamento.
Em setembro de 2019, Eduardo Bolsonaro compartilhou vídeo de uma ativista bolsonarista contra a Lava Toga; e Flávio Bolsonaro alegou que era “questionável” entrar no mérito de decisões do Supremo e que uma CPI como aquela “taca fogo no país”. Quatro anos depois, em 19 de julho de 2023, Flávio declarou: “Eu fui contra, sim – é importante trazer isso a público também -, a CPI da Lava Toga.”
O bolsonarismo, portanto, amarelou no Senado para contestar ministros do STF pela via constitucional e depois passou a mandar o povo ir às ruas a cada 7 de setembro, como repete em 2024, para ouvir discurso de políticos em carro de som. Em 8 de janeiro de 2023, diante da derrota eleitoral do “mito”, ainda apelou à via inconstitucional da contestação, com invasão e depredação de prédios dos três Poderes, colaborando para turbinar a retórica de defesa da “democracia”, com a qual o Supremo busca legitimar e acobertar seus abusos, com a cumplicidade do governo Lula e da ala chapa-branca da imprensa, sobretudo na TV. Todos unidos para controlar as narrativas de cima e monopolizar o alcance de massa, sem a reação em rede que mantém a sociedade alerta.
O portal Antagonista, a revista Crusoé – primeira vítima das censuras de Moraes – e eu, Felipe, somos alvos das militâncias de todos os lados, inclusive no X, porque nos recusamos, ao longo de todo este processo, a compactuar com a sujeira de cada um em nome do combate ao outro, e a fechar os olhos para os interesses comuns e atos conjuntos que nenhum dos lados tem coragem de confessar em público. Seguiremos assim, exercendo o jornalismo vigilante e documentando a verdadeira história do país, até a última ferramenta disponível.
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