E se um impeachment melhorar o STF?
Depois dos últimos cinco anos, está claro que a imposição de algum limite ao Supremo fará mais bem do que mal à República. Se o impedimento for muito drástico e arriscado, é preciso criar uma alternativa
Alexandre de Moraes chegou em 30 de agosto ao ápice de um processo que começou errado, em 2019, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) deu início a um inquérito sem ser provocado pelo Ministério Público. Há cinco anos, os ministros da Suprema Corte alegam proteger a democracia brasileira por meio de gambiarras jurídicas que machucam a República.
O rosto desses inquéritos sobre fake news e milícias digitais é Moraes, mas está claro que ele não age por conta própria ao determinar algo como a suspensão do X no Brasil. A decisão foi assinada apenas por ele, como outras tantas, mas seus colegas não reclamam, não contestam, não questionam. E, quando tocam no assunto, como no caso das mensagens da Vaza Toga, que expuseram em detalhes as gambiarras, o fazem para defender o colega.
Não precisaria ser assim. Em abril de 2023, o desembargador Flavio Oliveira Lucas, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), liberou o funcionamento do aplicativo de mensagens Telegram após dois dias de suspensão, determinada pelo juiz Wellington Lopes da Silva, da 1ª Vara Federal de Linhares (ES) — irônica e tragicamente, o próprio Moraes já tinha suspendido o Telegram em 2022, mas essa é outra história (e também a mesma).
“Milhares de pessoas absolutamente estranhas aos fatos“
O Telegram foi suspenso em 2023, em primeira instância, por se recusar a fornecer dados sobre um grupo neonazista que utilizava o aplicativo. Ao derrubar a suspensão — mas manter a multa diária de 1 milhão de reais por descumprimento da determinação de fornecer os dados —, o desembargador do TRF-2 disse que “a medida de suspensão completa do serviço não guarda razoabilidade, considerando a afetação ampla em todo território nacional da liberdade de comunicação de milhares de pessoas absolutamente estranhas aos fatos sob apuração”.
Quer dizer, a suspensão do aplicativo não punia apenas o responsável por ele, mas seus usuários, como destacou Felipe Moura Brasil, no caso do X, ao mencionar os 20 milhões de brasileiros que usavam a rede social. A Associação Nacional de Jornais (ANJ) divulgou nesta semana, com algum atraso, nota para dizer que a suspensão do X atrapalha o trabalho dos jornalistas, como já vínhamos destacando em O Antagonista.
“A entidade tem recebido uma série de informes de veículos e jornalistas que deixaram de ter acesso a visões, relatos e pensamentos de diferentes fontes de notícias, dentro e fora do Brasil, e que são corriqueiramente distribuídos por meio da plataforma. Uma das missões da imprensa é exatamente acompanhar o que se passa nas redes e fazer a devida verificação de versões e declarações, confrontando-as com fatos e dados reais”, disse a ANJ.
Um recurso ao… STF
Ao contrário do que ocorreu no caso do Telegram descrito acima, não há a quem recorrer para desbloquear a plataforma do bilionário Elon Musk no Brasil. Ou melhor, só existe o próprio STF, que resumiu a apenas uma instância essa entre tantas outras questões, já que nenhum ministro ousa divergir de fato de decisões como o bloqueio de perfis em rede social ou a prisão de civis flagrados em atos de vandalismo nas sedes dos três Poderes.
Nesse contexto, é muito curioso ouvir o argumento de que não havia alternativa a Moraes senão bloquear o X após a negativa de Musk de cumprir suas ordens e fechar a representação da empresa no Brasil. Quem diz isso esquece que todo o processo foi conduzido até este ponto por decisões secretas e no mínimo controversas do próprio ministro do STF, que claramente se encurralou e extrapolou na pretensão de segurar a democracia brasileira pelas rédeas.
Provocado pelo partido Novo, Kassio Nunes Marques pediu a Moraes, à Procuradoria Geral da República e à Advocacia Geral da União para se manifestarem sobre o bloqueio do X. Por que isso só ocorreu depois da suspensão? Por que o próprio Moraes não consultou a PGR (que foi apenas informada da decisão) e a AGU antes de decidir por uma medida que prejudica, entre outros, a comunidade científica brasileira?
A resposta: porque o ministro trata, desde 2022, tudo isso como se fosse urgente, como se a eleição daquele ano ainda não tivesse acabado — não por acaso, ele mencionou a eleição de 2024 ao bloquear o X.
Sem freio
O Supremo se agigantou nas últimas décadas. Passou a se envolver com disposição em pendengas políticas, a legislar naquilo que seus ministros julgam que os legisladores deveriam estar fazendo e, mais recentemente, a investigar, acusar e punir, ainda que os processos nos quais tudo isso ocorre nunca cheguem ao fim. Um único ministro pode, inclusive, suspender multas e anular provas ao seu bel-prazer, e resta aos seus colegas, no máximo, aguardar meses para fazer alguma modulação.
Tudo isso ocorre enquanto os juízes da mais alta Corte do país dão entrevistas sobre casos nos quais podem ter de se manifestar formalmente — o que até outro dia era considerado antecipação de voto e implicava em seu impedimento para participar do julgamento — e frequentam (e promovem) eventos com políticos e empresas interessados em processos que aguardam conclusão no próprio Supremo.
Impedimento
O agigantamento do STF ocorreu, entre outros motivos — que podem até ser considerados legítimos, como a tal da defesa da democracia —, porque não há nenhuma força em contrário a ele. Não há qualquer impedimento ao exercício do poder dos ministros, a não ser suas próprias consciências. É o que explica, entre outras coisas, o heterodoxo bloqueio de recursos da Starlink para bancar multas impostas à rede social X, só porque Musk tem participação nas duas empresas.
O contrapeso ao STF previsto em lei está no Senado e, por isso, os opositores ao governo Lula, maior alvo do Supremo nos últimos anos — outrora era o próprio Lula, entre outros petistas que lamentavam o “acovardamento” do STF — insistem em apresentar pedidos de impeachment de Moraes, que se tornou a pauta do ato de 7 de Setembro na avenida Paulista (foto).
Assim como o ímpeto da oposição, a “prudência” do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), em relação à abertura de um processo de impeachment de Moraes faz parte de cálculos políticos.
“Qualquer medida drástica de ruptura entre Poderes, neste momento, afeta a economia do Brasil, afeta a inflação, afeta o dólar, afeta o desemprego, afeta o nosso desenvolvimento”, disse Pacheco, sem dizer que liderar um processo como esse também afetaria suas próprias pretensões políticas.
A exemplo de Eduardo Cunha, que não deu início ao processo de impeachment de Dilma Rousseff pensando exatamente no futuro do país, Pacheco também não engaveta o de Moraes por temer a inflação. Como deixou claro o caso das emendas parlamentares, ninguém está disposto a abrir mão de poder em Brasília, e os ministros do STF certamente reagirão duramente a qualquer tentativa de contenção externa.
E a República?
Mas e a República, pela qual todos dizem zelar, como fica no meio desse jogo de poder? Depois dos últimos cinco anos, está claro que a imposição de algum limite ao Supremo fará mais bem do que mal à democracia brasileira — e ao próprio tribunal. Infelizmente, a única ferramenta disponível hoje, para além da autocontenção, como sugeriu o discreto Edson Fachin, é o impedimento de um dos ministros da Corte.
Aguarda votação na Câmara, contudo, uma série de projetos com a pretensão de modular o poder do STF. Seria ingenuidade pensar que esse movimento é desprovido de intenções políticas, pois há uma clara — quase declarada — intenção de retaliação, mas é assim que funciona o parlamento de qualquer país, e resta torcer para que se escreva certo por linhas tortas.
Uma das propostas prevê que decisões liminares tomadas por apenas um ministro, as famigeradas decisões monocráticas, sejam automaticamente encaminhadas para a próxima sessão do plenário, para que a maioria possa julgá-la e, se for o caso, referendá-la.
Esse mesmo projeto de lei prevê também que o Congresso Nacional poderia “sustar” os efeitos de uma decisão do STF “pelo voto de dois terços dos membros de cada uma de suas Casas Legislativas” caso os parlamentares interpretem que “a decisão [do STF] exorbita do adequado exercício da função jurisdicional e inova o ordenamento jurídico como norma geral e abstrata”.
Cartão vermelho
Seguindo a lógica do veto presidencial a projetos de lei aprovados pelo Congresso, que o parlamento pode derrubar, a proposta prevê também que o STF teria a prerrogativa de manter a decisão original questionada pelos parlamentares “pelo voto de quatro quintos de seus membros”.
A aprovação de um projeto como esse teria o caráter de um cartão amarelo para o tribunal, na comparação com o cartão vermelho que significaria um impeachment. Mas a base do governo Lula trava o avanço dessa, entre outras propostas, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara.
Não bastasse, Lula convidou e Moraes aceitou participar do desfile de 7 de Setembro em Brasília, que serviu como uma espécie de desagravo ao ministro e reforçou as suspeitas sobre o caráter político de suas decisões.
Depois, teve até churrasco supremo no Palácio da Alvorada. No atual contexto, esse tipo de comportamento transforma o impeachment de um ministro do STF em um ato a favor do tribunal, e não contra.
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