“Bizarro”, diz colunista português sobre ‘Gilmarpalooza’
“Nós não temos essa tradição, e é um mau hábito, ainda bem que não temos, de haver relações muito próximas entre juízes e políticos”
O Papo Antagonista entrevistou o colunista português João Paulo Batalha, consultor de política anticorrupção que publicou na revista Sábado um artigo sobre o Fórum de Lisboa, conhecido como Gilmarpalooza, que teve sua edição número 12 realizada na semana passada.
“Não existe nenhum evento do género em Portugal e seria até bizarro que existisse”, disse ele.
Leia abaixo a transcrição completa da entrevista e assista à íntegra no fim desta matéria:
Felipe Moura Brasil: O que mais chamou a sua atenção para que o senhor escrevesse o artigo “O festival do arranjinho”?
Batalha: Bom, confesso que meu interesse não era especificamente o Judiciário brasileiro ou a situação que se vive no Brasil – escrevo sobre tudo, sobre questões de interesses portugueses -; o que me chamou atenção foi o fato de este evento acontecer todos os anos em Portugal, ao longo da última década, mais do que a última década, e em Portugal ser um evento praticamente desconhecido. É um evento [em] que realmente a Faculdade de Direito de Lisboa, que é uma das mais antigas do país, serve como anfitriã e facilitadora de uma rede enorme de contatos formais e informais que são possíveis descortinar, que bem conheço e que em Portugal ninguém sabe que existe.
E, portanto, achei que era importante chamar a atenção para este evento, para o papel das autoridades portuguesas e especificamente da Faculdade de Direito de Lisboa. Porque isto mostra também uma questão que tenho abordado no meu trabalho como consultor e ativista, que é uma certa forma de legalização dos abusos de poder. E nós temos visto isto em nível internacional. A forma como os grandes poderes políticos, econômico e jurídico vão desenvolvendo os mecanismos da sua própria legitimação, inclusive os mecanismos legais de legitimação das suas práticas de poder. E este encontro é um bom exemplo disso. É um encontro com agenda pública que acontece às claras e que permite aos seus organizadores dizerem que não há problema nenhum, não há informalidade, não há conflito de interesses.
Esta semana, o próprio ministro Gilmar Mendes deu uma entrevista a um jornal português [Expresso] dizendo isso mesmo. É, de fato, o que de mais interessante e potencialmente valioso acontece neste fórum, é o que acontece fora dos holofotes e, portanto, a transparência e a divulgação pública do evento são um véu para cortar as relações que se tecem à margem do evento e nos jantares paralelos, nos coquetéis e em todos estes encontros informais; e, portanto, achei que [era importante chamar a atenção] até porque, [mesmo] sendo um evento quase exclusivamente de oradores e palestrantes brasileiros, ele tem envolvido várias personalidades e pessoas do governo e do Judiciário portugueses. Achei que era importante também em Portugal nós termos essa discussão sobre este tipo de eventos, porque algumas das discussões que estão em curso no Brasil também estão em curso atualmente em Portugal e em outros países, nomeadamente a relação entre o Judiciário e a política é uma discussão que está muito viva neste momento em Portugal e nós temos de ser muito exigentes no escrutínio das relações entre a política, o poder econômico e o poder dos tribunais.
PFM: E o senhor, no texto, faz algumas considerações críticas em relação às autoridades portuguesas presentes no evento, embora o senhor admita que algumas podem ter ido desavisadas, vamos dizer assim, sem perceber que estavam participando de um encontro que envolve todo um lobby. Agora, o senhor faz uma crítica um pouco mais incisiva em relação à própria Faculdade de Direito de Lisboa. O senhor acredita que a faculdade deveria refletir sobre a realização desse evento, dado todo esse entorno?
Batalha: Sim, esse é, aliás, um dos meus objetivos principais. É evidente que a faculdade devia rever a sua relação com este evento. Eu admito perfeitamente que uma individualidade portuguesa – este ano foram o presidente da nossa Assembleia da República e do nosso Parlamento, os presidentes do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Contas Português – podem receber um convite da Faculdade de Direito de Lisboa, que é uma faculdade antiga e prestigiada, para um evento que envolve juízes da Corte Suprema do Brasil e, portanto, não questionem esse convite, aceitem esse convite.
Mas seguramente a Faculdade de Direito que acolhe este evento há 12 anos sabe bem o tipo de evento que é e as relações que estabelecem. E há uma razão prática para toda a elite brasileira se mudar uma vez por ano, durante uma semana ou até pouco menos do que isso, para Lisboa, a sete mil quilómetros de distância de Brasília, para fazer uma discussão em que nos vários painéis, ao longo dos vários anos, praticamente só participam palestrantes brasileiros e, portanto, a Faculdade de Direito sabe perfeitamente que está a ser anfitriã de uma teia de informalidades e de relações que levantam muitos problemas de conflito de interesses. Infelizmente, essa Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que, como disse, é a segunda mais antiga de Portugal e uma das mais prestigiadas, tem se revelado, ao longo da sua história, muito mais uma escola de poder do que uma escola de Direito e de Justiça. É uma escola que forma uma grande parte das elites portuguesas, quer na estrutura, quer na política, e reproduz muitos destes vícios de poder. A Faculdade tem tido imensos problemas com denúncias de assédio e inclusive assédio sexual a alunos por parte de professores, é uma das faculdades mais ‘endogâmicas’ de todo o país. Ou seja, é uma faculdade onde mais de 90% dos professores foram alunos da própria faculdade, começaram a sua carreira de professores por convite da universidade, da faculdade, e não por concurso. E foi até uma instituição que em Portugal é das melhores a reproduzir estes vícios de poder, essas lógicas de circuito fechado, de amiguismos e, como eu disse, de arranjinhos.
E, seguramente, se eu posso ser benevolente com alguém que aceita um convite sem saber exatamente que evento é este, é também por isso que [a faculdade] devia estar alerta. A Faculdade de Direito tem uma responsabilidade que não está a assumir, de questionar a sua participação e da sua participação na promoção de eventos deste tipo.
FMB: Agora o senhor falou que em diversos países existe essa discussão sobre as relações envolvendo o Poder Judiciário. Como é em Portugal? Em Portugal existe o Tribunal Constitucional, existe o Supremo Tribunal de Justiça. Os juízes, ministros, como nós chamamos aqui os membros de tribunais superiores, eles costumam ter relações políticas? Eles participam de eventos com empresários? Há alguma analogia, comparação que se poderia fazer?
Batalha: Não existe nenhum evento do género em Portugal e seria até bizarro que existisse. Posso dizer, em termos de comparação, que há alguns meses houve um almoço de aniversário de um advogado crítico de uma região do país e que incluiu um juiz e o ex-líder de um partido político que aparentemente não tinham mesmo nenhuma relação entre si e estavam ali apenas por terem conhecimentos em comum. Portugal é um país pequeno. E mesmo assim, isso foi muito criticado e tudo indica que foi um acontecimento muito fortuito. E o juiz foi muito questionado. Houve grandes críticas.
Nós não temos essa tradição, e é um mau hábito, ainda bem que não temos, de haver relações muito próximas entre juízes e políticos. Seguramente haverá juízes e magistrados do Ministério Público, procuradores, que têm preferências eleitorais, políticas, como todos. E já tivemos situações no passado em que se percebeu que havia demasiada proximidade ou mesmo promiscuidade entre alguns membros das cortes superiores e o poder político. E isso também foi sempre duramente questionado. E naturalmente que, numa conferência acadêmica, pontualmente, virá um juiz do Supremo Tribunal de Justiça Portuguesa, do Tribunal de Contas, do Tribunal Constitucional. Tudo isso é normal, mas nunca são eles os próprios organizadores destes eventos. E não há um hábito de convívio cotidiano entre o poder judicial e o poder político. Há alguma reserva.
E eu diria que o próprio sindicalismo judiciário que existe em Portugal é crítico a este tipo de evento, e seria muito crítico dos próprios juízes ou procuradores que se envolvessem rotineiramente em eventos ou contatos formais ou informais, quer com o poder político, quer com o poder econômico.
FMB: O senhor cita no artigo diversas revelações feitas aqui pela imprensa brasileira a respeito, por exemplo, da participação de representantes de 12 empresas que têm processo em curso no Supremo Tribunal Federal Brasileiro. A participação do diretor da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, com viagem bancada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), que foi uma empresa investigada pela própria Polícia Federal e cuja investigação foi suspensa por decisão do Gilmar Mendes, o organizador desse evento, que ficou conhecido como o Gilmarpalooza. E agora, ouvindo o senhor, é muito importante ouvir como as coisas acontecem em Portugal, a gente percebe a força do contraste entre aquilo que está sendo feito pelas autoridades brasileiras e aquilo que se espera das autoridades em Portugal. Talvez por isso o senhor tenha usado palavras inclusive fortes. Quer dizer, o senhor utilizou “orgia da promiscuidade”, “institucionalização da promiscuidade”, o senhor se referiu diversas vezes a esse descaramento do lobby. É assim que o senhor enxerga?
Batalha: Sim, Gilmar Mendes nesta entrevista que deu ao jornal Expresso, que é um dos jornais de referência aqui em Portugal, afasta completamente quaisquer problemas de conflitos de interesses, diz que não existem. Mais ainda: diz que o Fórum de Lisboa é um sucesso e é visível no Brasil que dá certo. Portanto, isto é mesmo a institucionalização destas redes de contatos diretos, potencialmente clientelistas e em que o componente informal se mistura com o componente formal. Porque, de fato, como eu também mostro no artigo, o fato de todos os anos os painéis de debate serem quase exclusivamente de órgãos brasileiros significa que esta não é uma conferência internacional. Não é, por exemplo, uma Conferência dos Países de Língua Portuguesa. Há alguns palestrantes portugueses, há quase todos os palestrantes brasileiros, há um ou outro estrangeiro europeu, os que não têm os discursos mais importantes. Mas este é sobretudo um evento de elite política, econômica e judiciária brasileira e, portanto, a única razão para que esse evento se faça em Lisboa e não em Brasília, em São Paulo ou no Rio, ou no Brasil, é exatamente as pessoas poderem estar à vontade em Lisboa.
É absolutamente inquestionável a facilidade com que se pode reunir num restaurante de luxo, num jantar com membros do governo, juízes, advogados, procuradores, empresários, num ambiente que em qualquer sítio no Brasil, em qualquer canto do Brasil, levantaria perplexidades, seria notado, e aqui não é reparado, porque os portugueses que estão no restaurante não conhecem as personalidades brasileiras. E, portanto, a natureza do evento parece ser essa. Portanto, não é uma forma de fazer um debate académico que calha de acontecer em Lisboa. É uma forma, e por isso eu usei o termo transumância, portanto é uma espécie de peregrinação anual em que esta elite se muda para um sítio onde está mais protegida pela distância, para não só fazer o componente formal da conferência, mas ter todos estes eventos, estes encontros nos hotéis, nos apartamentos, nos restaurantes, nas discotecas, etc.
E, portanto, isto, claro, mesmo que a discussão, digamos, académica fosse muito útil, não é a forma de organizá-la e, portanto, é uma coisa que mostra não só uma cultura de promiscuidade, mas a naturalização dessa cultura. Ela é defendida pacatamente, como se fosse uma coisa normal e como se quem questiona tivesse um preconceito ou uma má vontade em relação aos organizadores. Então há uma ausência total da noção de conflito de interesses; e, obviamente, sem pôr em causa as decisões judiciais de Gilmar Mendes ou a investigação da Polícia Federal. É evidente que, quando depois vemos os que foram investigados e os que investigaram e os que tomaram decisões sobre as investigações a conviverem uns com os outros, fica, no mínimo, a aparência desse conflito de interesses. Então a decisão, mesmo que tenha sido a decisão juridicamente correta, fica manchada por uma mancha de suspeição, e essa deveria ser evitada. Portanto, nós teríamos até dos atores políticos, mas, ainda acima destes, dos atores do Judiciário um recato que este evento claramente não respeita.
FMB: Perfeito. Eu chamo o Gilmarpalooza de festa da casta, quer dizer, essa elite privilegiada brasileira, longe do povo, em Lisboa. E só pra encerrar, uma curiosidade aqui para os nossos espectadores, o senhor é apresentado como consultor de políticas anticorrupção e o senhor é formado em História. Qual é a sua atuação exatamente nesse campo de políticas anticorrupção?
Batalha: Bom, eu sou formado em História, de fato, mas nunca fui acadêmico, nem historiador. Portanto, eu trabalho na área das políticas públicas como a da corrupção, em organizações públicas ou privadas, mecanismos de integridade das organizações, e fui também fundador da Transparência Internacional aqui em Portugal há quase 15 anos, e estou presentemente também em outra organização, que é a Frente Cívica, uma associação de defesa de causas de interesse público.
Portanto, essas questões que têm a ver com as promiscuidades entre poderes e os mecanismos de integridade são questões que eu trabalho, quer como profissional, quer como ativista. E uma das coisas que digo sempre quando eu trabalho nessas áreas é que, quando se discutem questões, nomeadamente conflitos de interesses, que é o tema que estamos aqui a tratar, não estão em causa a idoneidade pessoal ou a integridade pessoal das pessoas. Estão em causa as instituições, a forma como nós defendemos e protegemos as instituições, ou não as defendemos e protegemos. Gilmar Mendes pode ser a pessoa mais honesta do mundo, e eu não tenho razões para crer que não seja, mas o fato de ele organizar nestes termos um evento com essas características põe em causa não só o seu papel enquanto ministro da Corte Suprema do Brasil, mas também o papel de muitos dos participantes deste evento, quer no plano do Judiciário, quer no plano político e no plano econômico. Tanto do ponto de vista da integridade das organizações e da confiança que elas devem merecer junto do povo brasileiro, este evento não devia acontecer nos termos em que tem acontecido há mais de dez anos.
FMB: Muitíssimo obrigado pela análise técnica, objetiva, sem qualquer tipo de ataque ou ranço pessoal, quer dizer, baseada em princípios, baseada na defesa da democracia com seus pressupostos de separação e independência entre os Poderes. João Paulo Batalha, boa noite e bom trabalho.
Batalha: Obrigado.
Assista à íntegra da entrevista:
“Bizarro”, diz colunista português sobre ‘Gilmarpalooza’
“Nós não temos essa tradição, e é um mau hábito, ainda bem que não temos, de haver relações muito próximas entre juízes e políticos”
O Papo Antagonista entrevistou o colunista português João Paulo Batalha, consultor de política anticorrupção que publicou na revista Sábado um artigo sobre o Fórum de Lisboa, conhecido como Gilmarpalooza, que teve sua edição número 12 realizada na semana passada.
“Não existe nenhum evento do género em Portugal e seria até bizarro que existisse”, disse ele.
Leia abaixo a transcrição completa da entrevista e assista à íntegra no fim desta matéria:
Felipe Moura Brasil: O que mais chamou a sua atenção para que o senhor escrevesse o artigo “O festival do arranjinho”?
Batalha: Bom, confesso que meu interesse não era especificamente o Judiciário brasileiro ou a situação que se vive no Brasil – escrevo sobre tudo, sobre questões de interesses portugueses -; o que me chamou atenção foi o fato de este evento acontecer todos os anos em Portugal, ao longo da última década, mais do que a última década, e em Portugal ser um evento praticamente desconhecido. É um evento [em] que realmente a Faculdade de Direito de Lisboa, que é uma das mais antigas do país, serve como anfitriã e facilitadora de uma rede enorme de contatos formais e informais que são possíveis descortinar, que bem conheço e que em Portugal ninguém sabe que existe.
E, portanto, achei que era importante chamar a atenção para este evento, para o papel das autoridades portuguesas e especificamente da Faculdade de Direito de Lisboa. Porque isto mostra também uma questão que tenho abordado no meu trabalho como consultor e ativista, que é uma certa forma de legalização dos abusos de poder. E nós temos visto isto em nível internacional. A forma como os grandes poderes políticos, econômico e jurídico vão desenvolvendo os mecanismos da sua própria legitimação, inclusive os mecanismos legais de legitimação das suas práticas de poder. E este encontro é um bom exemplo disso. É um encontro com agenda pública que acontece às claras e que permite aos seus organizadores dizerem que não há problema nenhum, não há informalidade, não há conflito de interesses.
Esta semana, o próprio ministro Gilmar Mendes deu uma entrevista a um jornal português [Expresso] dizendo isso mesmo. É, de fato, o que de mais interessante e potencialmente valioso acontece neste fórum, é o que acontece fora dos holofotes e, portanto, a transparência e a divulgação pública do evento são um véu para cortar as relações que se tecem à margem do evento e nos jantares paralelos, nos coquetéis e em todos estes encontros informais; e, portanto, achei que [era importante chamar a atenção] até porque, [mesmo] sendo um evento quase exclusivamente de oradores e palestrantes brasileiros, ele tem envolvido várias personalidades e pessoas do governo e do Judiciário portugueses. Achei que era importante também em Portugal nós termos essa discussão sobre este tipo de eventos, porque algumas das discussões que estão em curso no Brasil também estão em curso atualmente em Portugal e em outros países, nomeadamente a relação entre o Judiciário e a política é uma discussão que está muito viva neste momento em Portugal e nós temos de ser muito exigentes no escrutínio das relações entre a política, o poder econômico e o poder dos tribunais.
PFM: E o senhor, no texto, faz algumas considerações críticas em relação às autoridades portuguesas presentes no evento, embora o senhor admita que algumas podem ter ido desavisadas, vamos dizer assim, sem perceber que estavam participando de um encontro que envolve todo um lobby. Agora, o senhor faz uma crítica um pouco mais incisiva em relação à própria Faculdade de Direito de Lisboa. O senhor acredita que a faculdade deveria refletir sobre a realização desse evento, dado todo esse entorno?
Batalha: Sim, esse é, aliás, um dos meus objetivos principais. É evidente que a faculdade devia rever a sua relação com este evento. Eu admito perfeitamente que uma individualidade portuguesa – este ano foram o presidente da nossa Assembleia da República e do nosso Parlamento, os presidentes do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Contas Português – podem receber um convite da Faculdade de Direito de Lisboa, que é uma faculdade antiga e prestigiada, para um evento que envolve juízes da Corte Suprema do Brasil e, portanto, não questionem esse convite, aceitem esse convite.
Mas seguramente a Faculdade de Direito que acolhe este evento há 12 anos sabe bem o tipo de evento que é e as relações que estabelecem. E há uma razão prática para toda a elite brasileira se mudar uma vez por ano, durante uma semana ou até pouco menos do que isso, para Lisboa, a sete mil quilómetros de distância de Brasília, para fazer uma discussão em que nos vários painéis, ao longo dos vários anos, praticamente só participam palestrantes brasileiros e, portanto, a Faculdade de Direito sabe perfeitamente que está a ser anfitriã de uma teia de informalidades e de relações que levantam muitos problemas de conflito de interesses. Infelizmente, essa Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que, como disse, é a segunda mais antiga de Portugal e uma das mais prestigiadas, tem se revelado, ao longo da sua história, muito mais uma escola de poder do que uma escola de Direito e de Justiça. É uma escola que forma uma grande parte das elites portuguesas, quer na estrutura, quer na política, e reproduz muitos destes vícios de poder. A Faculdade tem tido imensos problemas com denúncias de assédio e inclusive assédio sexual a alunos por parte de professores, é uma das faculdades mais ‘endogâmicas’ de todo o país. Ou seja, é uma faculdade onde mais de 90% dos professores foram alunos da própria faculdade, começaram a sua carreira de professores por convite da universidade, da faculdade, e não por concurso. E foi até uma instituição que em Portugal é das melhores a reproduzir estes vícios de poder, essas lógicas de circuito fechado, de amiguismos e, como eu disse, de arranjinhos.
E, seguramente, se eu posso ser benevolente com alguém que aceita um convite sem saber exatamente que evento é este, é também por isso que [a faculdade] devia estar alerta. A Faculdade de Direito tem uma responsabilidade que não está a assumir, de questionar a sua participação e da sua participação na promoção de eventos deste tipo.
FMB: Agora o senhor falou que em diversos países existe essa discussão sobre as relações envolvendo o Poder Judiciário. Como é em Portugal? Em Portugal existe o Tribunal Constitucional, existe o Supremo Tribunal de Justiça. Os juízes, ministros, como nós chamamos aqui os membros de tribunais superiores, eles costumam ter relações políticas? Eles participam de eventos com empresários? Há alguma analogia, comparação que se poderia fazer?
Batalha: Não existe nenhum evento do género em Portugal e seria até bizarro que existisse. Posso dizer, em termos de comparação, que há alguns meses houve um almoço de aniversário de um advogado crítico de uma região do país e que incluiu um juiz e o ex-líder de um partido político que aparentemente não tinham mesmo nenhuma relação entre si e estavam ali apenas por terem conhecimentos em comum. Portugal é um país pequeno. E mesmo assim, isso foi muito criticado e tudo indica que foi um acontecimento muito fortuito. E o juiz foi muito questionado. Houve grandes críticas.
Nós não temos essa tradição, e é um mau hábito, ainda bem que não temos, de haver relações muito próximas entre juízes e políticos. Seguramente haverá juízes e magistrados do Ministério Público, procuradores, que têm preferências eleitorais, políticas, como todos. E já tivemos situações no passado em que se percebeu que havia demasiada proximidade ou mesmo promiscuidade entre alguns membros das cortes superiores e o poder político. E isso também foi sempre duramente questionado. E naturalmente que, numa conferência acadêmica, pontualmente, virá um juiz do Supremo Tribunal de Justiça Portuguesa, do Tribunal de Contas, do Tribunal Constitucional. Tudo isso é normal, mas nunca são eles os próprios organizadores destes eventos. E não há um hábito de convívio cotidiano entre o poder judicial e o poder político. Há alguma reserva.
E eu diria que o próprio sindicalismo judiciário que existe em Portugal é crítico a este tipo de evento, e seria muito crítico dos próprios juízes ou procuradores que se envolvessem rotineiramente em eventos ou contatos formais ou informais, quer com o poder político, quer com o poder econômico.
FMB: O senhor cita no artigo diversas revelações feitas aqui pela imprensa brasileira a respeito, por exemplo, da participação de representantes de 12 empresas que têm processo em curso no Supremo Tribunal Federal Brasileiro. A participação do diretor da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, com viagem bancada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), que foi uma empresa investigada pela própria Polícia Federal e cuja investigação foi suspensa por decisão do Gilmar Mendes, o organizador desse evento, que ficou conhecido como o Gilmarpalooza. E agora, ouvindo o senhor, é muito importante ouvir como as coisas acontecem em Portugal, a gente percebe a força do contraste entre aquilo que está sendo feito pelas autoridades brasileiras e aquilo que se espera das autoridades em Portugal. Talvez por isso o senhor tenha usado palavras inclusive fortes. Quer dizer, o senhor utilizou “orgia da promiscuidade”, “institucionalização da promiscuidade”, o senhor se referiu diversas vezes a esse descaramento do lobby. É assim que o senhor enxerga?
Batalha: Sim, Gilmar Mendes nesta entrevista que deu ao jornal Expresso, que é um dos jornais de referência aqui em Portugal, afasta completamente quaisquer problemas de conflitos de interesses, diz que não existem. Mais ainda: diz que o Fórum de Lisboa é um sucesso e é visível no Brasil que dá certo. Portanto, isto é mesmo a institucionalização destas redes de contatos diretos, potencialmente clientelistas e em que o componente informal se mistura com o componente formal. Porque, de fato, como eu também mostro no artigo, o fato de todos os anos os painéis de debate serem quase exclusivamente de órgãos brasileiros significa que esta não é uma conferência internacional. Não é, por exemplo, uma Conferência dos Países de Língua Portuguesa. Há alguns palestrantes portugueses, há quase todos os palestrantes brasileiros, há um ou outro estrangeiro europeu, os que não têm os discursos mais importantes. Mas este é sobretudo um evento de elite política, econômica e judiciária brasileira e, portanto, a única razão para que esse evento se faça em Lisboa e não em Brasília, em São Paulo ou no Rio, ou no Brasil, é exatamente as pessoas poderem estar à vontade em Lisboa.
É absolutamente inquestionável a facilidade com que se pode reunir num restaurante de luxo, num jantar com membros do governo, juízes, advogados, procuradores, empresários, num ambiente que em qualquer sítio no Brasil, em qualquer canto do Brasil, levantaria perplexidades, seria notado, e aqui não é reparado, porque os portugueses que estão no restaurante não conhecem as personalidades brasileiras. E, portanto, a natureza do evento parece ser essa. Portanto, não é uma forma de fazer um debate académico que calha de acontecer em Lisboa. É uma forma, e por isso eu usei o termo transumância, portanto é uma espécie de peregrinação anual em que esta elite se muda para um sítio onde está mais protegida pela distância, para não só fazer o componente formal da conferência, mas ter todos estes eventos, estes encontros nos hotéis, nos apartamentos, nos restaurantes, nas discotecas, etc.
E, portanto, isto, claro, mesmo que a discussão, digamos, académica fosse muito útil, não é a forma de organizá-la e, portanto, é uma coisa que mostra não só uma cultura de promiscuidade, mas a naturalização dessa cultura. Ela é defendida pacatamente, como se fosse uma coisa normal e como se quem questiona tivesse um preconceito ou uma má vontade em relação aos organizadores. Então há uma ausência total da noção de conflito de interesses; e, obviamente, sem pôr em causa as decisões judiciais de Gilmar Mendes ou a investigação da Polícia Federal. É evidente que, quando depois vemos os que foram investigados e os que investigaram e os que tomaram decisões sobre as investigações a conviverem uns com os outros, fica, no mínimo, a aparência desse conflito de interesses. Então a decisão, mesmo que tenha sido a decisão juridicamente correta, fica manchada por uma mancha de suspeição, e essa deveria ser evitada. Portanto, nós teríamos até dos atores políticos, mas, ainda acima destes, dos atores do Judiciário um recato que este evento claramente não respeita.
FMB: Perfeito. Eu chamo o Gilmarpalooza de festa da casta, quer dizer, essa elite privilegiada brasileira, longe do povo, em Lisboa. E só pra encerrar, uma curiosidade aqui para os nossos espectadores, o senhor é apresentado como consultor de políticas anticorrupção e o senhor é formado em História. Qual é a sua atuação exatamente nesse campo de políticas anticorrupção?
Batalha: Bom, eu sou formado em História, de fato, mas nunca fui acadêmico, nem historiador. Portanto, eu trabalho na área das políticas públicas como a da corrupção, em organizações públicas ou privadas, mecanismos de integridade das organizações, e fui também fundador da Transparência Internacional aqui em Portugal há quase 15 anos, e estou presentemente também em outra organização, que é a Frente Cívica, uma associação de defesa de causas de interesse público.
Portanto, essas questões que têm a ver com as promiscuidades entre poderes e os mecanismos de integridade são questões que eu trabalho, quer como profissional, quer como ativista. E uma das coisas que digo sempre quando eu trabalho nessas áreas é que, quando se discutem questões, nomeadamente conflitos de interesses, que é o tema que estamos aqui a tratar, não estão em causa a idoneidade pessoal ou a integridade pessoal das pessoas. Estão em causa as instituições, a forma como nós defendemos e protegemos as instituições, ou não as defendemos e protegemos. Gilmar Mendes pode ser a pessoa mais honesta do mundo, e eu não tenho razões para crer que não seja, mas o fato de ele organizar nestes termos um evento com essas características põe em causa não só o seu papel enquanto ministro da Corte Suprema do Brasil, mas também o papel de muitos dos participantes deste evento, quer no plano do Judiciário, quer no plano político e no plano econômico. Tanto do ponto de vista da integridade das organizações e da confiança que elas devem merecer junto do povo brasileiro, este evento não devia acontecer nos termos em que tem acontecido há mais de dez anos.
FMB: Muitíssimo obrigado pela análise técnica, objetiva, sem qualquer tipo de ataque ou ranço pessoal, quer dizer, baseada em princípios, baseada na defesa da democracia com seus pressupostos de separação e independência entre os Poderes. João Paulo Batalha, boa noite e bom trabalho.
Batalha: Obrigado.
Assista à íntegra da entrevista: