Como a infâmia de Lula marca a tragédia brasileira
É preciso dar uma dimensão cultural aos insultos lulistas a Israel e judeus, em contraste com os panos para Putin e Maduro
A equivalência traçada por Lula entre a reação militar de Israel ao ataque terrorista cometido pelo Hamas em 7 de outubro de 2023 e o extermínio em massa de judeus promovido por Adolf Hitler durante a Segunda Guerra Mundial foi desqualificada pelo próprio Lula na mesma entrevista de domingo, 18 de fevereiro de 2024, em hotel na Etiópia, quando jornalistas impeliram o petista a comentar episódios ligados à Rússia de Vladimir Putin e à Venezuela de Nicolás Maduro.
Antes de analisar suas falas à luz da história e da literatura, convém esmiuçar o contraste entre elas.
O insulto à comunidade judaica
“O que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus. Na Faixa de Gaza não está acontecendo uma guerra, mas um genocídio”, acusou Lula, o que levou Israel a considerá-lo “persona non grata” pela banalização do Holocausto e até o líder da oposição ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, Yair Lapid, a repudiar a “declaração vergonhosa que mostra ignorância e antissemitismo”.
O pano para Putin
Ao ser questionado sobre seu silêncio diante da morte de Alexei Navalny, crítico de Putin há anos perseguido e preso pela autocracia russa, o petista acusador, no entanto, reclamou da “pressa de acusar alguém”:
“Se a morte está sob suspeita, você tem que primeiro fazer uma investigação para saber do que o cidadão morreu. Vamos acreditar que os médicos legistas vão dizer. O cara morreu disso ou daquilo, para você poder fazer um pré-julgamento. Porque senão você julga agora que foi alguém que mandou matar e não foi e depois você vai pedir desculpas. Para que essa pressa de acusar alguém? (…) Não quero especulação. Então, o cidadão morreu numa prisão, eu não sei se ele estava doente, eu não sei se ele teve algum problema. (…) Porque, senão, é banalizar uma acusação.”
Lula quer que o mundo acredite nos “médicos legistas” do regime que despejou Navalny em uma prisão perto do Círculo Polar Ártico, na Sibéria, e que se recusa a devolver o corpo à sua mãe; enquanto ele mesmo usa dados do governo do Hamas, sob a fachada de “Ministério da Saúde em Gaza”, para comparar Israel com a Alemanha nazista. O petista, portanto, busca legitimar as narrativas de tiranos e terroristas sobre os efeitos diretos ou indiretos de suas violações, jogando o Brasil contra o mundo livre.
O contraste das falas
Para Lula, responsabilizar a autocracia russa pela morte de um opositor encarcerado por ela, antes da perícia oficial, é “especulação” e “banalizar uma acusação”, mas, antes de qualquer investigação sobre circunstâncias específicas, ou condenação em Corte internacional, o petista xinga a democracia israelense de genocida com base em alegações de assassinos e sequestradores de seu povo sobre a morte de dezenas de milhares de civis, tradicionalmente utilizados por eles como escudos humanos.
Pesa, também, o fato de Navalny ter exposto o luxo dos imóveis de Putin e a corrupção em seu governo. Lula – condenado em três instâncias por sua relação imobiliária com empreiteiras do petrolão, até ser solto e blindado pelo Supremo Tribunal Federal com mudança de jurisprudência e manobras processuais – não simpatiza com críticos que fazem isso. Eles ameaçam o poder autoritário e ganancioso dos hipócritas. Contra eles, toda vingança é relativizada; e a morte em decorrência dela, tratada como fatalidade.
O pano para Maduro
“Eu não tenho as informações do que está acontecendo na Venezuela”, alegou ainda o petista, quando questionado sobre o Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos ter sido expulso do país por Maduro. Em julho de 2023, Lula já havia dado resposta similar sobre a retaliação da ditadura venezuelana à sua principal opositora, Maria Corina Machado, impedida pela Controladoria-Geral de disputar eleições: “Não conheço pormenores do problema com a candidata da Venezuela”. Em janeiro de 2024, o Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela, instrumentalizado pelo ditador, ratificou a decisão, proibindo a ex-deputada de ocupar cargos públicos por 15 anos e, mesmo assim, seis meses depois, o petista permaneceu alheio ao “problema”.
Lula apenas internacionalizou seu método de fazer-se de sonso diante dos abusos cometidos por aliados, conhecido no Brasil desde o mensalão, quando disse que não sabia de nada do esquema do qual era o maior beneficiário político. Sua pressa para desconhecer “pormenores” do autoritarismo de regimes camaradas é a mesma adotada por ele para insultar rivais e judeus, afetando conhecimento sobre o nazismo de Hitler, ignorando elementos nazistas do terror do Hamas e distorcendo a caracterização do crime de genocídio que, conforme previsto no Estatuto de Roma, exige dolo específico: “intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”.
A falsa equivalência
O petista nem sequer tem informações sobre os dois bandidos do Comando Vermelho que fugiram do presídio federal de suposta segurança máxima de Mossoró, no Rio Grande do Norte, mas finge entender de conflitos no Oriente Médio para dar seus pitacos antissemitas. Sem especificar episódio algum, ele iguala o Fuhrer que comandou o genocídio de seis milhões de judeus, com asfixia até de mulheres e crianças em câmaras de gás, e as Forças de Defesa que, para evitar novos ataques com 1.200 assassinatos em seu território e resgatar 134 reféns remanescentes dos 239 sequestrados, abrem corredores humanitários e orientam civis a saírem das áreas de bombardeio de alvos terroristas.
Os malfeitores clássicos
A tamanhas amostras de cinismo e perversidade, é preciso dar uma dimensão cultural.
“Como se deve entender um malfeitor? O que é isso? Existe isso no mundo?”
As perguntas foram feitas pelo russo Alexander Soljenítsin, em seu livro “Arquipélago Gulag”, obra que expôs em 1973 o funcionamento e o drama humano dos campos de concentração e trabalho forçado na antiga União Soviética, sob o regime comunista de Josef Stálin.
O autor, primeiro, comenta que os malfeitores representados em conto de fadas são simplificados para a compreensão das crianças e que até o modelo presente na literatura de William Shakespeare, Friedrich Schiller e Charles Dickens “já nos parece um tanto burlesco e canhestro para a percepção contemporânea”.
“Os malfeitores deles reconhecem a si mesmos claramente como malfeitores; e sua alma como sombria. Eles raciocinam assim: não posso viver sem fazer o mal. Deixe que eu jogue pai contra filho! Deixe que eu me deleite com o sofrimento de minhas vítimas! Iago [o antagonista na peça shakespeariana “Otelo”] declara com precisão os seus objetivos e motivações – sombrios, gerados pelo ódio.”
Os malfeitores reais
Soljenítsin, então, mostra como a ideologia mascara e justifica o mal:
“Não, gente assim não existe! Para fazer o mal, a pessoa deve primeiro reconhecê-lo como bem, ou como uma ação razoável e regular. Tal é, felizmente, a natureza do ser humano; ele precisa buscar uma justificativa para suas ações.
Macbeth [personagem da peça homônima] tinha justificativas fracas – e foi consumido pela consciência. Mesmo Iago era um cordeirinho. Uma dúzia de cadáveres teria arruinado a fantasia e as forças espirituais dos malfeitores shakespearianos. Porque eles não tinham ideologia.
A ideologia! É ela que dá a justificativa buscada para a malfeitoria e aquela duradoura firmeza necessária ao malfeitor. Aquela teoria social que o ajuda a isentar-se de seus atos, perante si mesmo e perante os outros, e a ouvir louvor e honra, em vez de reprimendas e imprecações.”
A ideologia dos malfeitores
O autor cita vários exemplos, inclusive o do nazismo:
“Desse modo, os inquisidores socorriam-se do cristianismo; os conquistadores, do enaltecimento da pátria; os colonizadores, da civilização; os nazistas, da raça; os jacobinos e bolcheviques, da justiça, da fraternidade, da felicidade para as gerações futuras.
Graças à ideologia, coube ao século XX aplicar a maldade sobre milhões de pessoas. Não se pode refutá-la, contorná-la, calá-la – e como é que nos atreveríamos, com isso, a insistir que não existem malfeitores? Então quem destruiu aqueles milhões? E sem malfeitores o Arquipélago não existiria.”
Como Lula usa a ideologia?
Lula não é essencialmente ideológico: ele age e distorce a realidade por interesses pessoais de poder, mas usa a ideologia para atingir seus objetivos e, volta e meia, barbariza no uso.
A teoria social adotada por Lula para mascarar e justificar seu alinhamento preferencial a lideranças antidemocráticas é aquela que reduz a complexidade do mundo, ou qualquer situação particular, a uma divisão populista entre oprimidos e opressores, colonizados e colonizadores, nós contra eles, anti-imperialistas e Estados Unidos – incluindo aí antigos aliados dos EUA, como Israel.
A teoria faz Lula posar de defensor dos supostos fracos contra os supostos fortes, embora todo cidadão de bom senso entenda que 1.439 inocentes – em estradas, kibutz e festival de música eletrônica, onde uma jovem brasileira também morreu assassinada – foram oprimidos por terroristas armados no 7/10 e que o próprio povo palestino é reprimido em caso de insatisfação com o Hamas, que investiu bilhões de dólares na construção de túneis subterrâneos em vez de melhorar a vida em Gaza e cujos líderes levam vidas de luxo, com outros bilhões, no regime absolutista do Qatar.
A linha da maldade
Motivos não faltam para criticar Netanyahu, mas acusar o Estado judeu, conduzido por um triunvirato de guerra integrado pelo opositor Benny Gantz, de praticar os genocídios sofridos pelos judeus é, de fato, “cruzar uma linha vermelha”, como disse o primeiro-ministro.
Para Soljenítsin, a maldade, como outros fenômenos da natureza, “é uma grandeza limítrofe”: ela não existe em absoluto, até que certo limite é ultrapassado.
“Sim, a pessoa hesita, oscila durante toda a vida entre o mal e o bem, derrapa, cai, reergue-se com dificuldade, arrepende-se, de novo se obscurece – mas ainda não foi ultrapassado o limite da maldade, ainda está em suas possibilidades retornar, e ela mesma ainda está dentro de nossas esperanças. Quando, porém, pela densidade de seus atos maus, ou por seu grau, ou pelo caráter absoluto do poder, ela de repente atravessa o limite – ela abandona a humanidade. E talvez não haja volta.”
Considerando que Lula, além de seu histórico nacional de escândalos e divisionismo, já havia acusado Israel de genocídio em entrevista de dezembro de 2023 à Al Jazeera, emissora do Qatar que espalhou fake news anti-Israel sobre a explosão no hospital Al-Ahli, não há volta moral para ele – tanto que seu pauteiro internacional, Celso Amorim, veio a público endossar suas barbaridades, que acabam por importar o conflito, colocando em risco os judeus em nosso país.
O Brasil, no entanto, deveria aprender com Soljenítsin a evitar a ascensão de malfeitores.
A noção de justiça
O autor explica que, “aos olhos das pessoas, a noção de justiça é formada, desde tempos remotos, por duas metades: a virtude triunfa, e o vício é punido”. Em seguida, ele reflete sobre os efeitos deletérios da impunidade em seu país, em comparação com o processo de purificação alemã.
“Tivemos a sorte de viver para ver a época em que a virtude, embora não triunfe, nem sempre é acuada por cães. (…) E então, em 1966, na Alemanha Ocidental, 86 mil criminosos nazistas foram condenados” e muitos gritaram que “ainda é pouco! Eles têm que continuar! Mas, em nosso meio (de acordo com os dados publicados)”, lamenta ele, referindo-se à Rússia, “foram condenadas cerca de trinta pessoas”.
“O que acontece além do Oder [rio que serve de fronteira entre Alemanha e Polônia], além do Reno [rio que serve de fronteira entre Alemanha e Suíça, e entre Alemanha e França] – isso nos deixa em polvorosa. Mas o que acontece na região de Moscou, nos arredores de Sótchi [cidade russa na costa do Mar Negro], atrás de cercas vivas, o fato de que os assassinos de nossos maridos e de nossos pais andam por nossas ruas, e de que nós damos passagem a eles – isso não nos deixa em polvorosa, não nos comove, isso é ‘revirar o passado’.
E, no entanto, se formos converter para as nossas proporções os 86 mil alemães ocidentais, no nosso país teríamos um quarto de milhão!“
Os efeitos da impunidade
Soljenítsin lança questões para as gerações seguintes:
“É um mistério que não cabe a nós, contemporâneos, desvendar: por que razão foi dado à Alemanha punir seus malfeitores, mas à Rússia não? Que caminho funesto teremos se não for dado nos purificar dessa perversão que apodrece em nosso corpo?
Um país que, da tribuna do juiz, condenou o vício 86 mil vezes (e o condenou de maneira irrevogável na literatura e em meio à juventude) – ano após anos, degrau após degrau – vai se purificando dele.
E o que nós podemos fazer?… Em algum momento, nossos descendentes hão de denominar a nossa geração como uma geração de frouxos: primeiro nós permitimos, de maneira submissa, que milhões dentre nós fossem abatidos; depois, com todo o cuidado, tratamos de levar os assassinos até sua próspera velhice.
No século XX, não é possível passar décadas sem saber distinguir o que é uma bestialidade passível de julgamento e o que é ‘o passado’ que ‘não precisa ser revirado’!“
Mau exemplo à juventude
O autor critica o silêncio cúmplice diante das malfeitorias:
“Devemos condenar publicamente a própria ideia da repressão de algumas pessoas contra as outras! Ao nos calarmos sobre o vício, ao tentarmos empurrá-lo para junto do corpo, só para que ele não apareça por fora, nós o semeamos, e ele surgirá outras milhares de vezes no futuro. Sem punir os malfeitores, sem nem mesmo repreendê-los, nós não somente garantimos a velhice insignificante deles como arrancamos, desse modo, qualquer fundamento de justiça para as novas gerações. É por isso que elas crescem ‘indiferentes’, e não por conta da ‘deficiência do trabalho de formação’. Os jovens aprendem que a infâmia nunca é punida na terra, mas traz sempre a prosperidade.
E será desconfortável, e será terrível viver num país assim.”
Nem a queda da União Soviética comunista evitou o cumprimento da profecia de Soljenítsin na Rússia de Putin, onde os críticos do regime do ex-oficial da KGB morrem na prisão.
Os vícios brasileiros
No Brasil, onde políticos condenados por corrupção acabam impunes com a cumplicidade de uma geração frouxa de opositores e de uma imprensa indisposta a “revirar o passado”, e os críticos que erguem a voz contra o sistema são cassados ou censurados com ajuda de tribunais superiores, o vício ressurge milhares de vezes, a perversão apodrece o debate público e a tragédia culmina na infâmia.
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