A redação nota mil do Enem e a robotização ideológica
Em tempos de expansão da Inteligência Artificial e da escrita robotizada, a boa escrita deveria reivindicar seu valor. Escrever é uma arte. Como toda arte, pressupõe...
Em tempos de expansão da Inteligência Artificial e da escrita robotizada, a boa escrita deveria reivindicar seu valor. Escrever é uma arte. Como toda arte, pressupõe originalidade, potência criadora, técnica, estilo. O escritor sabe que o seu texto é imprevisível; nunca sai como ele planeja. Isso se dá porque o pensamento não é estático, acabado, pronto, mas é algo que se faz e se refaz no próprio ato de escrever.
O bom texto também é singular, único, porque refrata para o papel ou para a tela do computador algo do repertório do autor, sua experiência de vida e suas leituras.
Penso que não temos chances de competir com robôs que produzem textos, senão refinando a escrita, colorindo-a com aquilo que somos e que adquirimos com anos de leitura e de esforço nessa “profissão de fé” que, como diria Olavo Bilac, exige “tanta perícia, tanta requer, que ofício tal…nem há notícia de outro qualquer.”
“Livros e livros”
Isso me veio à mente após a leitura de uma matéria publicada recentemente no Estadão. A matéria dá conta de uma jovem que tirou nota mil no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Ela não é “muito de ler”, nem gosta de escrever, mas teve êxito no exame por aplicar fielmente um método de “redação semi-pronta” no qual as professoras lhe ensinaram que “não precisava ler livros e livros para fazer uma redação.”
De fato, não se lê “livros e livros” apenas “para fazer uma redação”. Lê-se “livros e livros” para ter acesso a diversas visões de mundo, aprender a refletir, expandir a compreensão das coisas, adquirir repertório, forjar um estilo.
Formar-se culturalmente, porém, parece prescindível para o jovem quando se torna óbvio que o Exame Nacional do Ensino Médio avalia tão somente a capacidade que o aluno adquiriu de reproduzir, de uma maneira técnica e formal, a visão ideológica esperada pela banca de corretores.
O método
Isso fica claro não apenas nas declarações ingênuas da aluna nota mil, mas nas falas das próprias professoras que vendem o exitoso método:
“Eles já vão para a prova sabendo os argumentos que podem usar e lá escolhem quais são os mais pertinentes para trabalhar com o tema proposto” […] Não dá para prever qual será o tema da redação, mas por ele sempre seguir um padrão – social, polêmico – a gente consegue observar causas ou motivos de permanência similares. É a partir dessa lógica que os alunos são capazes de argumentar sobre qualquer assunto e com repertórios socioculturais”, explicam as mentoras.
Ou seja, o previsível “padrão social polêmico” das propostas de redação do Enem possibilitou que as professoras adestrassem os alunos, municiando-os com uma série de argumentos prontos.
Para o caso específico da proposta do último ENEM, “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”, a aluna nota mil — e agora garota propaganda do método de redação prêt-à-porter — disse que escolheu como argumento “o patriarcado como elemento estruturante para a desvalorização do serviço realizado pelas mulheres”.
Com esse “ótimo” argumento do patriarcado na manga, bastou manejar o restante dos “repertórios socioculturais” que, justiça seja feita, encontram-se mais na retórica de professores doutrinadores do que em bons livros, que passam a ser dispensáveis.
A estudante também balançou na sua cabeça o saco das citações decoradas e retirou de lá essa do Claude Lévi-Strauss, que caiu como uma luva para a proposta: “Só é possível compreender adequadamente as ações coletivas por meio do entendimento dos eventos históricos.”
A intervenção aleatória precisou ser encaixada para dar ao texto aquele ar cult, que os pseudointelectuais adoram.
Mas ainda faltava algo… um toque final, a cereja do bolo para garantir a nota mil. Então, declarou triunfante a jovem, com a inocência de quem é só o resultado sintomático do que se tornou nosso sistema educacional: “Eu fiz essa ligação com a herança histórica machista que existe no Brasil.”
Enquanto o mundo corre para reavivar a criatividade e refinar a inteligência humana diante do vertiginoso crescimento da inteligência artificial, o Brasil vai no caminho inverso e opta por robotizar as mentes jovens, mantendo-as no círculo retórico de uma ideologia caduca.
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