Saudades é a nossa Belém sem Herodes
O horror voltou a se manifestar hoje numa escola brasileira. Mais precisamente, numa creche de Saudades, uma cidade catarinense de lindo nome próxima a Chapecó. Como relatamos, um jovem de 18 anos entrou na creche, armado de uma adaga (os primeiros relatos diziam ser um facão) e matou uma professora, uma funcionária e três crianças com menos de dois anos. Até o momento em que escrevo, sabe-se que uma quarta criança foi golpeada, mas passa bem. Perpetrada a barbaridade, o assassino tentou cortar o próprio pescoço...
O horror voltou a se manifestar hoje numa escola brasileira. Mais precisamente, numa creche de Saudades, uma cidade catarinense de lindo nome próxima a Chapecó. Como relatamos, um jovem de 18 anos entrou na creche, armado de uma adaga (os primeiros relatos diziam ser um facão) e matou uma professora, uma funcionária e três crianças com menos de dois anos. Até o momento em que escrevo, sabe-se que uma quarta criança foi golpeada, mas passa bem. Perpetrada a barbaridade, o assassino tentou cortar o próprio pescoço. Sem antecedentes criminais, ele guardava armas em casa, de acordo com a polícia, e consta que sofreu bullying na escola, o que está longe de ser justificativa para o seu ato. Não existe justificativa nenhuma para o que ele fez. Se for declarado louco, isso não o torna inocente.
Foi assim que três crianças — três bebês — morreram. Como na cena bíblica em que o romano Herodes manda matar todas as crianças de colo em Belém, depois de saber que havia nascido o “rei dos judeus”. Saudades, no interior de Santa Catarina, passou a ser a nossa Belém do massacre dos inocentes. Belém sem Herodes, mas Belém mesmo assim. Deveria ser a manchete principal de todos os jornais, sites e emissoras do país, mas o Brasil perdeu completamente a sua pouca vocação para espantar-se diante do horror. É porque o horror se esgueirou para dentro das nossas casas, das nossas vidas, primeiro com a criminalidade violenta epidêmica, cotidiana, e agora com a pandemia que já dizimou mais de 400 mil cidadãos. Banalizamos de vez o horror, incorporando-o à nossa normalidade — e, neste momento, ele vira espetáculo político na CPI da Covid. O que são bebês esfaqueados numa creche numa pequena cidade de Santa Catarina, quando comparados ao depoimento de Luiz Henrique Mandetta aos senadores? Sem prejuízo para o seu andamento, o espetáculo da CPI da Covid poderia ter parado, feito ao menos um minuto de silêncio em solidariedade às famílias das crianças, mas não, não podemos parar. Parar para chorar, parar para pensar. É que o horror contínuo tem este efeito também: anestesia-nos profundamente para o seu significado.
Atentados em escolas, antes uma especialidade americana, começaram a ocorrer de tempos em tempos no Brasil. Talvez fosse o caso de refletirmos sobre o fenômeno. O que ele quer dizer? O horror, esse horror, guarda alguma relação com o nosso desastre educacional, sem que caiamos no impulso de explicar o inexplicável? Haveria uma forma de evitar o horror, esse horror, que talvez seja explosão de um mal que se avoluma sem que o vejamos ou queiramos ver? Se fizéssemos perguntas, talvez nos indagaríamos também por que será que a escola, em geral, já não consegue ser um espaço de aprendizado, convivência e liberdade. Mas não: trataremos o caso, mais uma vez, como fato isolado. Foi um louco, um monstro, e pronto. A convivência com o horror nos obriga a não fazer perguntas, muito menos as certas.
Quando ocorreu o atentado na escola em Suzano, em março de 2019, escrevi um artigo para a Crusoé sobre a banalidade do mal. Ela nos habita, é incontornável, como eu disse na revista, mas as suas manifestações mais cruas ocorrem quando há um decréscimo de civilização. Não deveríamos perder isso de vista. A civilização também está presente nas perguntas sem resposta. Fazê-las, simplesmente, já seria um acréscimo civilizacional.
O que escrevi há dois anos ainda vale, e valerá para sempre, em toda e qualquer situação semelhante:
“Ao assistir às imagens do massacre perpetrado na escola em Suzano, pensei na banalidade do mal – a expressão utilizada por Hannah Arendt no seu livro sobre o julgamento do nazista Adolf Eichmann, em Jerusalém. “Ele resumia as lições que o longo curso da maldade humana havia nos ensinado – a lição da terrível banalidade do mal, que desafia a palavra e o pensamento”, escreveu a filósofa alemã, que cobriu o julgamento para a revista The New Yorker. Eichmann disse que cumpria ordens e obedecia à lei na Alemanha de Hitler. ‘Ele simplesmente nunca percebeu o que estava fazendo’, diz Hannah Arendt.
A banalidade do mal — e vou esgrimir o conceito com uma liberdade que a sua criadora talvez desaprovasse — é tão desafiadora para a palavra e o pensamento que se tenta encontrar uma explicação lógica para ocorrências macabras como a da escola em Suzano: foi o bullying, foi a facilidade de se comprar armas, foi a falta de vigias e professores armados, foi o excesso de violência nos jogos de videogame… Não, senhores, a causa profunda não está em nada disso. O massacre foi mais uma demonstração paroxística da banalidade do mal. Ele habita as nossas vísceras, está sempre à espreita para manifestar-se em diferentes graus, dentro ou fora da lei. Os homens não nascem bons e sim maus. Somos a única espécie essencialmente má deste planeta ou, quem sabe, do universo. Muitas vezes simplesmente não percebemos o que estamos fazendo, assim como Eichmann, porque o mal nos é inerente. Acho até que os jogos de videogame violentos podem ser uma sublimação lúdica para esse aspecto intrínseco ao ser humano.
O esforço civilizatório é para conter a banalidade do mal e introjetarmos o seu antípoda – a banalidade do bem. A primeira nos é natural; a segunda nos é cultural. Ou seja, precisa ser ensinada e cultivada. O ‘livrai-nos do Mal’ do Pai Nosso é um apelo para que Ele nos livre do mal que existe em nós mesmos – e que, não raro, mostra a sua face medonha em monstros como os autores do massacre em Suzano. Monstros são tão mais assustadores porque nos revelam as tentações dos nossos mais perigosos demônios interiores. ‘E não nos deixeis cair em tentação’. Os santos são aqueles que conseguiram ser tão banalmente bons que essa qualidade lhes parece essencial. Tal é o seu maior milagre. Fôssemos naturalmente bons, santos não seriam venerados como exemplos a seguir.
A religião, os tabus tribais e a teoria política são freios à nossa maldade autoaniquiladora, como regra geral. Niccolò Machiavelli, o florentino cujo sobrenome daria origem ao termo “maquiavelismo”, para designar a negação de leis morais (uma falsificação, visto que Machiavelli era um moralista tão extremado que via a utilidade de meios não morais para atingir fins moralíssimos), escreveu nos Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio que “é necessário para quem estabelece um Estado e adota leis pressupor que todos os homens são maus e que eles sempre agirão com a maldade dos seus espíritos sempre que tiverem liberdade de ação”. Os brasileiros constatam cruamente a verdade de Machiavelli no seu cotidiano.
Todo o empenho civilizatório, no entanto, é abalado, mesmo que fugazmente, quando a banalidade do mal emerge como ocorreu em Suzano. O substantivo mais utilizado para descrever o vídeo da câmera de vigilância da escola, que flagrou os assassinos em ação, foi ‘horror’. E ele, o substantivo, remete a um autor que enfrentou o desafio de descrever em palavras e pensamentos a banalidade do mal: Joseph Conrad, polonês naturalizado inglês, autor de Coração das Trevas, que serviu de base para o filme Apocalypse Now, do diretor americano Francis Ford Coppola. O diretor transportou o Congo do século XIX, cenário do romance de Conrad, para o Vietnã conflagrado da década de 60. Leia o livro, veja o filme.
Conrad tinha uma ambição explicada por ele próprio: ‘A tarefa que tento cumprir é, pelo poder da palavra escrita, fazer você ouvir, fazer você sentir – é, acima de tudo, fazer você ver’. Em Coração das Trevas, ele nos leva ao interior da África colonial, por meio do capitão Marlow, para nos fazer ouvir, sentir e ver o horror produzido por Kurtz, um traficante de marfim europeu que edificara o seu próprio inferno, passando a ser tratado como semideus por nativos. No inferno de Kurtz, a banalidade do mal era a condição permanente.
O momento que antecede a morte de Kurtz é assim relatado por Marlow, que o resgatara:
‘Jamais havia visto algo de comparável à mudança que houve nas suas feições, e espero nunca ver de novo coisa semelhante. Oh, eu não estava tocado. Eu estava fascinado. Foi como se um véu tivesse sido rasgado. Vi na sua face de marfim a expressão de orgulho sombrio, de poder implacável, de terror covarde – o desespero intenso e absoluto. Ele revivia a sua vida em todos os detalhes de desejo, tentação e entrega durante aquele supremo momento de completo conhecimento? Ele lamentou-se em um murmúrio diante de alguma imagem, de alguma visão – ele lamentou-se duas vezes, em uma exclamação que não era mais do que um sopro:
O horror! o horror!’
A banalidade do mal foi a última imagem, a última visão das vítimas do massacre da escola em Suzano. Não era literatura.”
Em Saudades, as crianças mortas — os bebês mortos — nem chegaram a aprender o que era o mal. Eu choro com as famílias.
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