Orlando Tossetto Jr. na Crusoé: Então tá: a crise é estética
Os gregos tinham uma palavra, "apeirokalia", para se referir à “falta de experiência das coisas mais belas”
Há algum tempo se começou a dizer que a crise é, em primeiro lugar, estética, dada a feiura geral e a breguice de gostos dos governo de direita que subiu em 2018 e, de 2022 para cá, não parou mais de cair.
É difícil discordar; mas cumpre reconhecer que a crise continua e se estende por todo o espectro ideológico, já que os heróis atuais da democracia são, aí nesse lado estético, tão ruins quanto os de antes.
Que o digam a mobília nova do Palácio do Planalto ou os vestidos de gala da primeira-dama.
Falando em Palácio, lembrei agora de quando o senhor João Agripino governou meu estado, o de São Paulo, e entendeu que era chegada a hora de modernizar (no meio em que ele vive e obra, se diz repaginar) o visual do Palácio dos Bandeirantes.
Pois modernizou, repaginou, e escancarou ali o tamanho dessa crise estética: o visual do Palácio, antes anódino e semelhante ao das velhas repartições públicas, virou uma mistura de boate suspeita com salão de festas de condomínio do Jardim Anália Franco.
Então tá: a crise é estética.
Mas se não tem cor ideológica, também não se restringe aos ambientes do novo-riquismo.
Ela está firme, forte e vigorosa também nos ambientes do velho-pobrismo.
Nos centros avacalhados das nossas metrópoles, por exemplo, cobertos de pixações e de lixo espalhado por todos os cantos.
Nas calçadas dessas mesmas metrópoles, todas esburacadas, às vezes decoradas com interessantes vazamentos de esgoto, cujo olor nos chega, insinuante, às narinas.
Na sua falta de árvores, no brutalismo arquitetônico, no ruído incessante, no calor bestializante.
Pois é, conseguimos piorar a deselegância discreta das nossas esquinas.
Mas quem dera a crise estética fosse só urbana.
Ela está na dura poesia concreta das meninas que se vestem como freiras e usam cabelos cor de chiclete e botinas do Exército, e também na das meninas que conseguem sair à rua semidespidas e malvestidas, e ainda na intrepidez com que outras ostentam e sustentam seu sobrepeso.
Ela está na indumentária dos moços de camiseta regata nas igrejas e havaianas na condução, ou de sapatênis nas festas de casamento.
Ela está nos piercings nasais, labiais, umbilicais.
Ela está nas tatuagens de caveiras e de frases feitas.
Ela está na caligrafia infantil de adultos de quase quarenta anos.
Ela está no uso cada vez maior e mais absurdo de jargões técnico-comerciais e estrangeirismos na nossa linguagem do dia a dia: desde o camarada que, no aniversário da namorada, escreve a ela como como se ela fosse alguma cliente, desejando “a plena realização de todos os seus objetivos”, até à mulher no trem falando de “medicação” em lugar de “remédio” ou à recrutadora que te oferece um job e pergunta qual é a sua fee.
Ela está no vício em palavras e expressões tão malhadas que viraram clichês e perderam o sentido (e, roubadas do sentido, começam a servir para tudo e para nada): fascismo, nazismo, sexismo, reacionarismo, democracia, fake news, extrema-direita, políticas públicas, produção e consumo de conteúdo, contexto, polarização.
Ela está na má ortografia da redação, do bilhete, do ofício, da matéria da revista, da reportagem do jornal, da sentença judicial.
Ela está na má sintaxe: as crases erradas, as subordinações insubordinadas, as regências engolidas e as preposições espancadas, o subjuntivo encarcerado.
Ela está na língua mal falada; nos solecismos que voam das bocas nos nossos homens, públicos e privados, como perdigotos; na sua inarticulação.
Ela está em tudo o que nos vem sendo impingido como arte: no cinema chato, feio e de um tema só; na “música” que não é mais música e em suas “letras” que nem tentam mais ser poesia; na dramaturgia dramaticamente ruim; no pixo no lugar da pintura; no resto que nem de resto merece o nome.
Na vida que vivemos sempre menos entre encantos mil: tirante os recantos naturais, aliás cada vez mais cheios de gente, de lixo e de ruído, nos sobrou pouco, quase nada.
Os gregos tinham uma palavra, apeirokalia, para se referir à “falta de experiência das coisas mais belas”.
Parece até que criaram a palavra para falar do Brasil…
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