O culto aos mortos no cinema
Estreou na Netflix a série Wandinha, spin-off da Família Addams. A série se tornou a terceira mais assistida em língua inglesa na plataforma, e trouxe a famosa família de volta aos holofotes. À primeira vista, a Família Addams parece ser só uma franquia de humor satírico...
Estreou na Netflix a série Wandinha, spin-off da Família Addams. A série se tornou a terceira mais assistida em língua inglesa na plataforma, e trouxe a famosa família de volta aos holofotes. À primeira vista, a Família Addams parece ser só uma franquia de humor satírico com elementos mórbidos. Desconfio que seja muito mais do que isso.
Não é raro uma obra de arte conter elementos simbólicos ou arquetípicos que transcendem até mesmo o horizonte de consciência dos seus criadores. É que o passado jamais morre completamente para o homem, como diz Fustel de Coulanges no clássico livro A Cidade Antiga. “O homem pode bem esquecê-lo, mas ele o guarda sempre consigo, porque o seu estado, tal como se apresenta em cada época, é o produto e resumo de todas as épocas anteriores”, escreve Coulanges.
Em vez de estudar a antiguidade pelas leis e instituições, Fustel de Coulanges voltou-se para as crenças. E a principal delas era a crença na vida após a morte, em que a alma se encerrava com o corpo na sepultura. É por isso que entre os egípcios, assim como entre os gregos e romanos, enterravam-se as pessoas com objetos, dos quais viessem a ter necessidade. Derramava-se vinho, colocava-se comida no túmulo.
A necessidade da sepultura derivou da crença numa segunda vida destinada a fixar a alma e o corpo. As almas insepultas ficariam errantes e viriam atormentar os vivos. A importância do sepultamento para os antigos está demonstrada na Antígona, de Sófocles, o drama da filha de Édipo para sepultar o pai. O temor aos mortos está na origem do sentimento religioso, segundo Coulanges.
Os Addams negam o mundo moderno, vivem em função de si mesmos e dos antepassados. A relação com os mortos, e até a atração pela morte, é a cara da Família Addams. Tal característica é vista apenas como uma inversão da sociedade americana. Mas não é só isso, é uma inversão específica, dessa sociedade com o seu oposto natural: a cultura latina, onde floresceu o Império Romano, e, posteriormente, o catolicismo romano.
É que o catolicismo herdou várias características do culto aos mortos. Em Casa Grande & Senzala, Gilberto Freyre se refere ao culto na sociedade patriarcal brasileira como “um culto doméstico dos mortos que lembra o dos antigos gregos e romanos”. Nas igrejas eram velados os mortos, eram enterrados e ali permaneciam.
Na modernidade, a relação dos vivos com os mortos foi se distanciando. Aí está a chave para a oposição entre os Addams e a sociedade americana do entorno: eles são arcaicos, antimodernos, vivem no mundo místico-religioso da sociedade tradicional. É por isso que eles vivem em função da família, resolvem os problemas com fórmulas mágicas herdadas dos antepassados.
Alexandre Linck disse que a Família Adams é uma família católica latina, representada sob o ponto de vista de um protestante. Faz todo sentido. Gomez, o nome do patriarca da família, é um nome latino. Ele e sua esposa, Mortícia, são sensuais e só pensam em sexo. Uma das características da cultura latina, que Ortega y Gasset chama de cultura mediterrânea, é o sensualismo.
Eles socializam no cemitério do lar, onde tem seus antepassados enterrados – o que lembra o Dia dos Mortos mexicano, quando os mortos voltam para visitar os vivos.
A estética mórbida dos filmes de 1991 e 1993, porém, remetem diretamente ao cinema clássico americano. Mortícia foi inspirada na personagem macabra de Gloria Swanson em Crepúsculo dos Deuses, de 1950. Existe clara influência também do expressionismo alemão, com dramaticidade intensa, uso marcado de maquiagem e atmosfera de sonho.
Tais opções produzem uma carga de significado que vai além do simples entretenimento. O filme de Barry Sonnenfeld, primeiro longa-metragem sobre a Família Addams, termina com a família desenterrando os mortos por pura diversão. Eles parecem seguir o preceito de Ortega y Gasset: “Só há um modo de dominar o passado, reino das coisas fenecidas: abrir nossas veias e injetar seu sangue nas veias vazias dos mortos”.
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