“Colocamos em risco a vida inteligente”
Não gostamos da solidão. A solidão nos impõe o silêncio, onde encontramos quem não queremos encontrar: nós mesmos. A solidão não é a ausência de pessoas, mas sim a presença de uma única pessoa. Assim como a solidão não é o nada, o silêncio não é o vazio sonoro, mas sim o grito arrebatador de reflexões e pensamentos que não suportamos. A evolução tecnológica da comunicação, nos últimos anos, televisão e rádio, e, especialmente, das redes sociais, contribui para a fuga desse encontro insuportável com o nosso eu...
Não gostamos da solidão. A solidão nos impõe o silêncio, onde encontramos quem não queremos encontrar: nós mesmos. A solidão não é a ausência de pessoas, mas sim a presença de uma única pessoa. Assim como a solidão não é o nada, o silêncio não é o vazio sonoro, mas sim o grito arrebatador de reflexões e pensamentos que não suportamos. A evolução tecnológica da comunicação, nos últimos anos, televisão e rádio, e, especialmente, das redes sociais, contribui para a fuga desse encontro insuportável com o nosso eu. Recebemos com enorme facilidade, na Internet, mensagens e vídeos de todos os gêneros e sentidos. Fugimos do silêncio para aceitar, sem julgamento, sem reflexão, como verdades absolutas, qualquer comunicação que venha do exterior de nossa mente humana. Colocamos em risco a vida inteligente.
A fuga do insuportável silêncio nos joga em um mundo de informações de outras pessoas, de assuntos e teorias de fácil acolhimento, assim começamos a viver a vida e o pensamento de mentes humanas diferentes. Passamos a ser o receptáculo, o celeiro preenchido por coisas boas e más de terceiros. A qualidade do que recebemos e armazenamos em nossa mente depende do grau de julgamento que deveríamos fazer sobre o conteúdo e a fonte de comunicação. E aqui reside um grave problema.
Por essência, nós, seres humanos, nascemos e vivemos mergulhados em conflitos (Freud). Pior, na maioria das vezes, gostamos dos conflitos e optamos por eles; de forma mais clara e contundente, quase todos os dias decidimos e gritamos pela libertação de um Barrabás, guerreiro, revolucionário, libertador, e condenamos um Galileu, pacificador, equilibrado, pensador. Não gostamos do equilíbrio. Desejamos o extremismo e o pânico. E, por isso, quando há comunicação, especialmente, mas não só, aquela por redes sociais, com conteúdo de fácil acolhimento ao que há de pior em nós mesmos, logo nos jogamos para aceitá-la. E neste caso, quando pensamos no livre arbítrio como significado histórico, religioso, científico do poder de escolha que nos diferencia dos seres irracionais, deparamo-nos a uma contradição: o próprio livre arbítrio demanda um passo anterior, qual seja, a reflexão, o pensamento sobre uma escolha própria, individual, circunscrita a nossa própria vida.
Como resolver tal contradição? Como aceitar reflexões e pensamentos de terceiros, oriundos de comunicações cuja veracidade não é questionada, e, ao mesmo tempo, renunciar ao nosso próprio julgamento para exercer o livre arbítrio, ao poder de escolha de nossas próprias vidas e destinos?
Vivemos tempos em que a mente humana deixou de ser alimentada (Paul Valery), por nossa exclusiva culpa, pela comodidade de não querer pensar, passamos a não distinguir entre fato e ficção, verdadeiro e falso (Hannah Arendt). Pior. Somando-se a este novo mundo, uma sociedade de máquinas humanas, sem pensamentos próprios, sem questionamentos, aceitando como verdades absolutas o que vem de outros, encontramos pessoas que renunciam ao poder de escolha e o devolvem a um ser Divino. Voltamos aos tempos teocráticos, a um mundo de monarcas que tinham o poder oriundo de um Divino para decidir sobre as nossas vidas, em que os poderes político e religioso se confundiam. Assim, toda a sorte de vida passava a ser de uma só pessoa ou de um grupo de pessoas religiosas, cuja sentença recaia sobre valores, princípios, culturas e destinos que deveríamos passar a seguir.
E mais. Encontramos outras pessoas que passaram a implorar por um salvador, um único homem ou uma única instituição, mas alguém que decida sobre as nossas vidas, que os nossos próprios pensamentos, reflexões e julgamentos, existentes naquele silêncio arrebatador, sejam afastados de nós.
Nos dois casos, sobre a tentativa de substituição do Estado Laico, Secular, de separação do Estado e Igreja, por um Estado Teocrático, e sobre a escolha de um Salvador, um único homem ou uma única instituição, o resultado será o mesmo: um Estado Totalitário. E nessa composição, há pessoas destituídas de pensamentos, reflexões e julgamentos próprios, onde a mente humana atrofia e a civilização moderna retrocede, involui para tempos sombrios. Tempos em que as pessoas são facilmente manipuladas, negam o óbvio, aceitam o ridículo, rompem com irmãos e amigos, deserdam filhos por terem pensamentos diferentes do Divino ou do Salvador e deixam de viver para apenas sobreviver em uma bolha psíquica de mentiras, como seres irracionais. E assim, lembramos a advertência de um certo José: a pior cegueira é a mental, que faz com que não reconheçamos o que temos pela frente. (José Saramago in Ensaio sobre a Cegueira)
* Marcos Joaquim G Alves é advogado e professor, fundador do Instituto SHE
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