E as vítimas do Me Too e do Ministério dos Direitos Humanos?
Caso Silvio Almeida e Anielle Franco: entre alegações de interferência em processos licitatórios e acusações de assédio sexual sem a transparência e seriedade que as denúncias demandam, o que emerge é uma disputa de poder entre instituições
* Texto enviado pelo advogado e mestre em Ordem Jurídica Constitucional, Pedro Henrique de Araújo Cabral
No âmago de uma sociedade verdadeiramente livre, um senso fundamental deveria ser o pilar das relações entre indivíduos, qual seja, o princípio da não-agressão (PNA). De acordo com este princípio, nenhum indivíduo ou grupo tem o direito de iniciar o uso da força, seja física, seja moral, contra outra pessoa.
A base desse princípio é a ideia de autopropriedade: cada pessoa é proprietária de si mesma, de seu corpo e de sua mente, e qualquer invasão dessa esfera pessoal, seja através de agressão física, coerção ou violência psicológica, é uma violação de sua soberania individual.
Quando se trata de assédio sexual, o ato respectivo configura uma violação direta do PNA, pois envolve o uso de força (física ou moral) para intimidar ou coagir outra pessoa, comprometendo sua integridade e sua autopropriedade. No entanto, a aplicação desse princípio deve ser mediada por um processo justo para todas as partes envolvidas. Nesse sentido, o devido processo justo torna-se indispensável para que, ao se buscar justiça, não se cometam outras injustiças.
O devido processo exige uma investigação minuciosa de toda acusação, assegurando o contraditório e o direito de defesa ao acusado. Somente dessa forma, a verdade pode emergir sem influências externas ou manipulações institucionais.
Assim, qualquer denúncia de assédio sexual deve ser tratada com seriedade, mas com a garantia de que o acusado tenha a oportunidade de se defender, evitando condenações prematuras fundamentadas em interesses alheios à busca pela verdade.
O caso Silvio Almeida
Dito isso, recentemente, vieram a público denúncias graves envolvendo o ministro Silvio Almeida e a organização Me Too Brasil, gerando questionamentos sobre a proteção das vítimas de assédio sexual e o respeito ao devido processo legal.
A Me Too Brasil acusou o ministro de assédio contra diversas mulheres, incluindo, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco. Em resposta, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) saiu em defesa do titular da pasta, alegando que as denúncias são falsas e insinuando que a ONG age motivada por seus interesses contrariados na condução de uma licitação pertinente ao serviço “Disque 100”, sob sua responsabilidade.
O caso é que a Me Too Brasil, que afirma prestar apoio psicológico e jurídico às vítimas, alega ter recebido os relatos de assédio cometidos pelo Ministro contra várias mulheres “por meio de seus canais”. No entanto, até o momento, faltam detalhes sobre os eventos denunciados, como o local, a data e o número exato de vítimas envolvidas.
Ademais, a ministra Anielle Franco, apontada como uma das supostas vítimas, até o momento, não confirmou expressamente as acusações, lançando dúvidas sobre a veracidade e as motivações das denúncias.
Por outro lado, o MDHC alega que a organização civil se opôs à separação do Disque 100 e Ligue 180 e teria tentado alterar o formato da licitação, sendo essas a razões mediatas das acusações feitas.
Embora tais alegações possam sugerir um possível conflito de interesses, não foram apresentadas provas concretas que justifiquem as insinuações de tentativa de tráfico de influência e superfaturamento.
Além disso, o longo intervalo entre as supostas tentativas de influenciar o certame, que supostamente ocorreram entre dezembro de 2023 e janeiro de 2024, e a revelação pública dessas suspeitas levantam dúvidas sobre as imputações, ainda mais em razão da ausência de providências legais para resguardar a integridade do processo licitatório em que se versava verba pública na casa das dezenas de milhões de reais.
Desvio de foco e disputa de poder
Ambas as partes parecem ter desviado o foco do que deveria ser o objetivo principal:a proteção das vítimas de assédio. Entre alegações de interferência em processos licitatórios e acusações de assédio sexual sem a transparência e seriedade que as denúncias demandam, o que emerge é uma disputa de poder entre instituições que deveriam, em primeiro lugar, garantir o respeito ao PNA.
O princípio da não-agressão exige, quando denúncias de assédio sexual são apresentadas, que o ato seja tratado como uma violação da integridade física e moral das vítimas e impõe a todos quanto tomem conhecimento, principalmente, se autoridade pública, o dever de agir prontamente para investigar, reparar os danos e responsabilizar os agressores, obviamente, em devido processo conduzido de maneira a garantir o contraditório e o direito à defesa.
A falta de clareza nas denúncias e a inércia em tomar medidas imediatas legais cabíveis podem sugerir que o interesse na proteção das mulheres supostamente assediadas não estava colocado em primeiro plano pela ONG.
Direito ao contraditório e ampla defesa
Outrossim, é fundamental assegurar que o acusado tenha o direito ao contraditório e à ampla defesa, independentemente de quem seja. Nenhuma acusação deve ser tratada superficialmente, e os fatos precisam ser apresentados com responsabilidade e rigor.
Tentativas de manipulação de processos judiciais ou administrativos (como a demissão de um Ministro de Estado) sem a observância do devido processo atentam contra os direitos de todos em um estado de direito.
Disputa institucional
Esse cenário, em que as supostas vítimas de assédio são tratadas como peões em uma disputa institucional, é desolador.
Se as denúncias são legítimas e o objetivo real é a proteção das mulheres, por que a Me Too Brasil não encaminhou imediatamente os relatos às autoridades competentes?
E, se o MDHC suspeitava de irregularidades na licitação, por que não agiu de imediato para corrigir o processo e punir os responsáveis pelas tentativas ilegais de ingerência?
O longo silêncio e a falta de transparência, de ambos os lados, sugerem que os interesses em jogo vão além da proteção das vítimas.
A sociedade precisa questionar se as instituições envolvidas estão, de fato, comprometidas com a proteção das vítimas e o respeito ao devido processo, ou se estão apenas instrumentalizando o sofrimento humano para atingir seus próprios objetivos.
Em suma, a proteção das vítimas e o respeito ao devido processo não podem ser relegados a segundo plano em disputas de poder entre instituições que deveriam buscar a verdade com transparência.
A falta de clareza e os vácuos temporais nos levam à pergunta: quem vai proteger as vítimas do Me Too Brasil e do Ministério dos Direitos Humanos?
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