A mentalidade por trás da destruição do patrimônio
As vítimas mais recentes da crise política brasileira são um quadro de Di Cavalcanti, uma escultura de Brecheret, um relógio francês da época de Luís XIV, destruídos ou danificados nas invasões aos edifícios da Praça dos Três Poderes domingo passado. A destruição do patrimônio não é um fato excepcional. Na verdade, ela responde a uma mentalidade específica que é uma constante na história brasileira...
As vítimas mais recentes da crise política brasileira são um quadro de Di Cavalcanti, uma escultura de Brecheret, um relógio francês da época de Luís XIV, destruídos ou danificados nas invasões aos edifícios da Praça dos Três Poderes domingo passado. A destruição do patrimônio não é um fato excepcional. Na verdade, ela responde a uma mentalidade específica que é uma constante na história brasileira.
Em 2021, um incêndio consumiu parte do acervo da Cinemateca Brasileira, em São Paulo, depois da instituição passar um ano sem uma empresa gestora. Isso aconteceu porque Abraham Weintraub, então Ministro da Educação, encerrou o contrato com a empresa que geria a Cinemateca. Sem a devida manutenção, dois galpões da Cinemateca pegaram fogo. Mário Frias, então Secretário de Cultura, só contratou a nova empresa na manhã seguinte ao incêndio. Antes de pegar fogo, o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, foi vítima de longa negligência por parte da UFRJ, especialmente com a parte elétrica, que veio a pegar fogo, consumindo um dos mais importantes acervos da história brasileira, inclusive a maior coleção de múmias da América Latina.
O Palácio Monroe, também no Rio de Janeiro, uma das mais importantes obras do ecletismo arquitetônico no mundo, foi destruído no governo Geisel. Uma campanha pela sua destruição foi iniciada por Lucio Costa, arquiteto modernista, autor do projeto de Brasília. Hoje no lugar existe apenas um espaço vazio e um chafariz.
No Recife, a Igreja dos Martírios, uma igreja barroca do Século XVIII, foi destruída para a construção da Avenida Dantas Barreto. Hoje a avenida leva nada a lugar nenhum e é um dos lugares mais degradados da cidade.
Não raro, o passado é visto como um estorvo. No acervo de instituições ou nas cidades, o passado ocupa espaço. Ocupa espaço também na nossa mente. Toda geração tem a tentação de pensar: “E se fosse possível se livrar disso tudo?”.
Evidentemente, as obras do passado precisam de seleção. Nem todos os prédios devem ser conservados, nem todas as obras de arte devem ir para o acervo dos museus. Entretanto, o que vimos é a destruição de obras relevantes, imprescindíveis. A principal vítima é o passado recente: os modernistas foram responsáveis pela destruição de várias obras do período anterior, o chamado ecletismo arquitetônico. Os ecléticos, por sua vez, “modernizaram”, e assim desfiguraram obras neoclássicas.
Filmagens históricas do Recife e de São Paulo das décadas de 1950 e 1960 mostravam os novos prédios altos e desprezavam as obras ecléticas e históricas. Hoje, os turistas filmam e fotografam especialmente os prédios históricos, e não dão grande atenção aos modernos, com exceção de ícones como o Edifício Copan, em São Paulo.
Atualmente, a cidade de Brasília, o projeto urbanístico e suas principais obras arquitetônicas, é criticada pela esquerda e pela direita, inclusive por motivos opostos. A esquerda critica Brasília por considerá-la elitista. Os espaços entre as prédios nas quadras, a restrição na altura dos edifícios residenciais, produziram uma cidade bastante cara para morar. Já a direita critica o projeto por achá-lo semelhante a uma cidade soviética ou comunista – muitos inclusive pensam que foi Oscar Niemeyer, um comunista, que projetou a cidade, quando ele projetou apenas alguns dos principais prédios.
A não-realização do Bicentenário da Independência, a data mais importante do país em cem anos, pelo governo Bolsonaro, é outro exemplo do descaso com a nossa história. Os gestores da SECULT do governo chegaram a dizer que outras áreas eram mais importantes do que a cultura e trataram de contingenciar os recursos – já pequenos – da pasta.
Só que um país não se mantém sem cultura. A cultura é o cimento da unidade nacional. A língua, os bens materiais e imateriais, dão sentido e corpo à nacionalidade, nos conectam com os nossos antepassados. Bem disse Gilberto Freyre no livro Uma cultura ameaçada: “O grande drama da vida e da morte para os povos não é o que decide pelas armas a sorte dos estados; nem a dos regimes políticos. O grande drama é o que decide a sorte das culturas”.
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