A guerra contra o terror no Brasil
Jair Bolsonaro, ainda candidato e a duas semanas do pleito de 2018, falou para seus seguidores reunidos na avenida Paulista (não é fake, está gravado em vídeo): “Bandidos do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], bandidos do...
Jair Bolsonaro, ainda candidato e a duas semanas do pleito de 2018, falou para seus seguidores reunidos na avenida Paulista (não é fake, está gravado em vídeo):
“Bandidos do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], bandidos do MTST [Movimento dos Trabalhadores Sem Teto], as ações de vocês serão tipificadas como terrorismo. Ou vocês se enquadram e se submetem às leis ou vão fazer companhia ao cachaceiro lá em Curitiba [Lula]”.
Aí está um exemplo de como o conceito de terrorismo pode ser instrumentalizado a favor de uma força política. Hoje o MST e o MTST – assim como o PT e suas tendências internas (e externas, como a Globo News) – não hesitam em classificar as manifestações golpistas dos vândalos do dia 8 de janeiro de 2023 como terrorismo.
Nos dois casos é falso.
O que foi o 8 de janeiro? Foi uma manifestação antidemocrática desesperada (do tipo “é agora ou nunca”) que dificilmente levaria, por si só, a um golpe de Estado à moda antiga, como alguns estão dizendo. Os manifestantes não tinham força político-militar para tanto.
A temperança democrática recomenda que os responsáveis devem ser punidos normalmente pelo Estado democrático de direito, observando-se sempre o devido processo legal e não procedimentos de exceção (e, por isso, precisamos parar com essa besteira de “punição exemplar”). Os atos golpistas também não devem ser aproveitados como pretexto para, como estão propagando dirigentes de partidos de esquerda, “derrotar o golpismo nas ruas”, pois isso significaria manter um estado de guerra faccional que não interessa a ninguém, muito menos à democracia. O assunto não pode ser tratado como uma luta da extrema-direita contra a esquerda ou vice-versa e sim como um ataque ao regime democrático e contra suas instituições (independentemente de quem ocupa essas instituições no momento).
O fato é que as sedes das mais importantes instituições da democracia foram depredadas e quem agiu concretamente, apoiou logística ou financeiramente, arquitetou e conclamou a delinquência, deve ser identificado, processado e, quando for o caso, apenado.
O que é quase inexplicável é a incapacidade do Estado brasileiro de agir preventivamente para evitar desfecho tão humilhante. Sabia-se que esse tipo de cópia da invasão do Capitólio americano estava sendo preparada há muito em grupos de WhatsApp e Telegram. Sabia-se que ônibus chegariam à Brasília trazendo milhares de potenciais insurretos. Por que se deixou que manifestantes facilmente identificáveis entrassem na esplanada e caminhassem (sem qualquer tipo de barreira, revista ou triagem) em direção às sedes dos poderes? Quem abriu a porta do Palácio do Planalto? Essas responsabilidades, do governo do Distrito Federal e, inclusive, do governo Federal, também devem ser apuradas.
Os vândalos golpistas identificados devem responder por crimes de associação criminosa, atentado contra o Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, perseguição e incitação ao crime. Está certo. E terrorismo? Neste caso, não entra. É mais uma narrativa política, como a de Bolsonaro.
Mas não há também algum terrorismo? Há. O tipo político-penal, entretanto, não se aplica a todos os crimes que foram cometidos. Dois casos sim, um não. Sim, destruição de torres de transmissão de energia na última semana. “Há indícios de vandalismo”, disse boletim da Aneel. Está errado. Se for confirmada motivação política é terrorismo. Sim, o mesmo vale para tentativa de explodir caminhão de combustível próximo ao Aeroporto de Brasília no final de dezembro. Flávio Dino falou em extremismo. Mas é terrorismo.Não, acampamentos diante de instalações militares pedindo intervenção militar e invasão e depredação de prédios públicos: é crime, mas, em geral, não é terrorismo e sim golpismo e vandalismo.
Dito isso, é necessário aprofundar a análise.
Pesquisa AtlasIntel, divulgada há alguns dias, mostra que 51,1% dos brasileiros aprovam o desempenho de Lula. Queiramos ou não, isso revela um país dividido. É muito pouco para um líder populista querer impor, no curto prazo, a hegemonia inconteste da sua facção de esquerda. Todavia, uma campanha de cerco e aniquilamento dos bolsonaristas, desumanizados como terroristas, é um prato cheio para o avanço da esquerda, mas pode não ser o melhor caminho para turbinar a popularidade de Lula.
O caminho da pacificação (política, nada de anistia jurídica) seria melhor, mas exigiria uma frente ampla de verdade (o que não há no governo, mas pelo menos deveria haver em defesa da democracia na sociedade) e a aceitação e valorização das oposições democráticas que surgissem.
O PT, entretanto, não quer isso. Está no modo revanche e quer defenestrar da cena pública quem não pertence à frente de esquerda no poder ou não se ajoelha diante do governismo. Na sua fixação para ser uma espécie de Mandela, seria Lula capaz de mudar essa cultura hegemonista construída, camada sobre camada, durante 40 anos?
Entenda-se bem. A justiça deve fazer o seu trabalho e punir todos os criminosos. Mas o nosso tema aqui é a política. Do ponto de vista da política, a vibe dos vencedores é a de revanche. E isso não é bom para a democracia porque prorroga um estado de guerra (ainda que fria).
Talvez alguns esperem que o 8 de janeiro de 2023 cumpra, para Lula, papel semelhante ao que o 11 de setembro de 2001 cumpriu para Bush: forçar todo o sistema político a apoiá-lo. Igualar os vândalos golpistas de Brasília aos terroristas que derrubaram o World Trade Center revela a intenção de surfar nessa onda (e os democratas só esperam que isso não gere nada parecido com um USA Patriot Act).
Há outro paralelo mais óbvio, porém. A invasão do Capitólio dos EUA em 6 de janeiro de 2021, em que golpistas americanos, convocados e insuflados por Donald Trump, tentaram impedir a ratificação da vitória de Joe Biden, mas isso não canonizou o democrata americano, como aqui imaginam que aconteça com Lula os seus seguidores e a imprensa chapa-branca, que logo se concertou para classificar como terroristas – semelhantes aos do Isis ou da Al Qaeda – os manifestantes golpistas de Brasília. Há algo muito errado nisso tudo.
Quando você carimba uma pessoa de terrorista, não há mais espaço para a conversa e, portanto, para a política. Com terroristas não se negocia. Por isso é preciso tomar todo cuidado com as generalizações. Só terroristas devem ser chamados de terroristas. A tiazinha do zap e o aposentado do pavê que foram acarreados de Copacabana ou da Vila Maria para as manifestações golpistas em Brasília não podem ser classificados com os mesmos critérios usados para caracterizar Abu Bakr al-Baghdadi (Isis) ou Abubakar Shekau (Boko Haram) como terroristas. Pessoas insufladas a participar de atos golpistas, com ou sem vandalismo, não são necessariamente terroristas. Pior do que isso será xingar de terroristas os simpatizantes de Bolsonaro ou os seus eleitores, mesmo os que só votaram nele para impedir a volta do PT ao governo. Se fizermos isso retiraremos a capacidade da democracia de metabolizar as forças que não são democráticas (mas que compreendem desde extremistas que querem abolir o regime de modo violento, até os pacíficos inconformados e os ressentidos contrariados com a vitória de Lula). A democracia convive com pessoas que não concordam com a democracia, que falem contra a democracia, que até façam manifestações contra a democracia, desde que não atentem contra o Estado de direito ou não violem as leis.
A defesa do Estado democrático de direito contra violadores das leis é policial e judicial, não bélica. A democracia não é guerra e sim evitar a guerra. Sem guerra quente. Sem guerra fria. E sem política como continuação da guerra por outros meios. Quem inventou a ideia antidemocrática de “inimigo interno” foi a doutrina de segurança nacional dos ditadores militares e não deixa de ser irônico que setores da esquerda estejam agora querendo reintroduzir essa noção autocrática.
É explicável por que muitos intelectuais de esquerda, inclusive pesquisadores da extrema-direita, acabem sucumbindo ao apelo da guerra e se afastando da política democrática. Acham que se trata de montar uma força para exterminar a extrema-direita, uma espécie de Comando de Caça aos Fascistas (ou aos Terroristas). Mas a guerra contra o terror (real ou imaginário) é uma armadilha. Porque, de toda sorte, alimenta a guerra (que, repita-se, é sempre a falência da política). Sim, o estado de guerra prolongado acaba derruindo ou retirando qualidade da democracia. Pelo contrário, é necessário desconstituir a guerra, criar um ambiente de pacificação que isole os grupos extremistas e confine-os nas fronteiras do espectro político onde, então, podem ser mais facilmente metabolizados pela democracia.
Os intelectuais de esquerda radicalizados se alvoroçam e não querem nem ouvir falar em pacificação, que confundem maldosamente com anistia para Bolsonaro e os demais envolvidos nos crimes. O pesquisador Miguel Lago, segundo a Folha (de 13/01), resume tudo ao dizer que há uma “chance única de união da classe política e da sociedade civil não bolsonarista em torno de Lula”. Ora, por que em torno de Lula? A união deve ser em defesa da democracia, congregando os governistas que apoiam Lula e os que a ele se opõem democraticamente. Ser contra o golpismo e o vandalismo (e, obviamente, contra o terrorismo, nos casos reais de terrorismo) não significa ser a favor do petismo.
Lago não está sozinho nesse juízo, mas tem lá suas visões particulares. Ele acha que existe populismo do bem e queria que Lula fosse uma espécie de reencarnação de Getúlio: todo mundo mesmerizado pelo condottieri. Articulações de organizações não-governamentais governistas para cassar parlamentares eleitos bolsonaristas (antes até do início da legislatura) estão a todo vapor. A esquerda populista está querendo começar uma caça às bruxas. Dizem que é preciso aproveitar a força do momento para cortar a cabeça do monstro. Lula, como foi dito, dando uma de Bush, vai querer turbinar sua popularidade na base da guerra contra o terror?
Para os petistas hegemonistas, toda essa conversa sobre defesa da democracia, combate ao terrorismo, prisão dos fascistas, tudo isso sempre foi, na verdade, sobre Lula. O objetivo é transformar Lula num Mandela para depois viver mil anos no Reich construído sob sua sombra? Se for isso, aqui se vê que os perigos para a nossa democracia não vêm só da extrema-direita.
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