Ilha cercada de mortes (1)
Entre sexta-feira e ontem, 5 000 imigrantes ilegais, provenientes da África, foram resgatados pelas Marinhas de países europeus no Mediterrâneo. Dezessete cadáveres foram recolhidos do mar pela Marinha italiana.A tragédia humanitária continua, e em ritmo crescente. No final de 2013, eu (Mario) estive na ilha italiana de Lampedusa, próxima à costa da Tunísia e palco da maioria dos desembarques dessa gente desesperada que foge da miséria e das guerras. A reportagem foi publicada na última edição da Veja daquele ano e, como continua atual, decidi reproduzi-la aqui em quatro posts. Boa leitura a quem se dispuser a fazer essa travessia...Lampedusa, um ponto que surge do nada
Entre sexta-feira e ontem, 5 000 imigrantes ilegais, provenientes da África, foram resgatados pela Marinha italiana no Mediterrâneo. Dezessete cadáveres foram recolhidos do mar.
A tragédia humanitária continua, e em ritmo crescente. No final de 2013, eu (Mario) estive na ilha italiana de Lampedusa, próxima à costa da Tunísia e palco da maioria dos desembarques dessa gente desesperada que foge da miséria e das guerras. A reportagem foi publicada na última edição da Veja daquele ano e, como continua atual, decidi reproduzi-la aqui em quatro posts. Boa leitura a quem se dispuser a fazer essa travessia.
Para o visitante acidental, Lampedusa é um ponto de terra seca que surge do nada, depois que o turboélice desce em direção a um mar que, nas vizinhanças do inverno, se encrespa com ondas que se erguem vertiginosas, para logo em seguida tombarem em rodamoinhos de espuma branca, como se a água babasse de raiva por você estar ali, tão perto e tão longe das profundezas onde jazem barcos fenícios, gregos, cartagineses e romanos tragados também pela voragem da história. Para os seus 6 002 habitantes, durante a relativa abundância do verão turístico, Lampedusa é um ponto-final no abandono – e longas reticências nos meses frios de isolamento quase que total. Em 2013, Lampedusa passou a ser, mais do que nunca, dois outros pontos: o de exclamação assustada para uma Europa que se quer fortaleza – e o de interrogação aflita para os imigrantes indesejados que nela tentam entrar. A apenas 113 quilômetros da costa da Tunísia, e a 205 do litoral da Sicília, da qual é apêndice administrativo, a ilha é Europa no conceito e África na geografia física. A cidade de Túnis, capital do país árabe, está ao norte de Lampedusa, imagine-se.
Foi o conceito, mais precisamente o de porta de entrada austral do mundo rico, o que buscavam alcançar as 366 pessoas, onze delas crianças, mortas no naufrágio da noite de 3 de outubro, data que entrou para o rol da infâmia. Em fuga da miséria, de guerras tribais, de conflitos políticos em países como Somália e Eritreia, espremidas numa armadilha de madeira flutuante, as vítimas mal tiveram tempo de ver as tíbias luzes de Lampedusa, antes de ser engolidas pelas chamas de uma fogueira acesa para que o barco à deriva fosse visto – e, na sequência, tragadas pelo mar, naquela que foi a maior tragédia da imigração ilegal do ano que termina e, ao que se sabe, de todos os outros imediatamente anteriores na região. A guarda costeira italiana conseguiu resgatar 157 almas, enviadas para o Centro de Acolhida. Saíram do inferno para entrar no purgatório, sem nenhuma certeza de chegar ao paraíso ou o que acreditam sê-lo.
Em Lampedusa, e ao seu largo, os raios caem várias vezes no mesmo lugar. Oito dias depois, 268 sírios, dos quais sessenta crianças, em fuga da guerra civil, afogaram-se a 100 quilômetros da ilha, com as autoridades italianas atribuindo a negligência à vizinha Malta e vice-versa. Os mortos desse outubro macabro juntaram-se a outros milhares no Mediterrâneo, cuja soma varia de acordo com a estatística – ou a falta dela. Nos últimos quatro anos, até novembro, registrou-se a morte dequase 4 000 imigrantes que tentaram vencer o mar que separa a África e o Oriente Médio da Europa. Só no triângulo formado por Lampedusa, Líbia e Tunísia, esse número chega a quase 2 000. Organizações assistenciais avaliam, no entanto, que o total já tenha ultrapassado os 20 000 mortos, a maioria em naufrágios invisíveis. Ainda que se fique com as cifras oficiais, sempre mais brandas por razões envergonhadas de Estado, continua-se no campo do pesadelo. Para se ter uma ideia, de acordo com o Banco Mundial, a taxa de mortalidade de imigrantes ilegais nessa fronteira marítima é dez vezes maior do que na terrestre que cinde os Estados Unidos do México.
Desde os naufrágios de dois meses atrás, a Itália reforçou a operação militar Mare Nostrum (era como os romanos chamavam o Mediterrâneo), que visa a interceptar imigrantes clandestinos antes de eles aportarem na costa do país. A operação está no âmbito da Frontex – agência da União Europeia (UE) destinada a coordenar o controle das fronteiras externas – e da Eurosur, mais uma iniciativa dos burocratas de Bruxelas, recém-criada para atuar nos limites ao sul. Siglas vistosas que não impedem que marinheiros gregos, ao abordarem naves carcomidas cheias de gente proveniente do Oriente Médio, retirem os seus motores, para que a corrente as leve em direção à rival Turquia. Ou que a Marinha da Espanha continue a fazer disparos de intimidação contra embarcações que transportam carga humana, “Parece que essa Frontex tem um prédio lindo, desses de vidro, na Polônia”, comenta, de bonachão a sarcástico, Antonino Taranto, idealizador, diretor, escritor e vendedor da Associação Cultural Arquivo Histórico de Lampedusa.
Quando este repórter esteve na ilha italiana, em meados de novembro, Taranto empenhava-se em proporcionar alguma diversão aos eritreus que, à noite, fora do Centro de Acolhida, vagavam pela cidade deserta, com moletons finos e chinelos – sim, chinelos, para enfrentar o outono e o inverno, fornecidos pelo centro, assim como os moletons ideais para temperaturas frias cariocas. “Eu resolvi baixar músicas eritreias no computador, para os pobrezinhos ouvirem na calçada aqui em frente”, diz ele. Já fora da casa que abriga a associação, entre tragadas de cigarro, Taranto filosofa como a emergência é uma oportunidade para conhecer situações no mais das vezes ocultas aos olhos do mundo. “Outro dia, um garoto de 16 anos me contou que saiu da Etiópia a conselho da mãe, depois que o pai foi assassinado. Dezesseis anos, e veio para cá sozinho!”, relata.
Com 20,2 quilômetros quadrados, bordas recortadas por falésias e pequenas baías, Lampedusa tem uma história que oscilava entre o insignificante e o fabuloso, com breves paradas no curioso, até que fosse tisnada pelo trágico. Foi colônia efêmera de fenícios e gregos que lá tropeçaram como num seixo no meio do caminho. Durante as guerras púnicas, serviu de base aos romanos nos ataques a Cartago, na hoje Tunísia. Lá, então, fabricava-se um condimento à base de peixe, o garum, muito popular em Roma, informa Taranto. Desse período, sobrou apenas uma escultura da deusa Atenas, sem cabeça nem braços, escondida numa pequena vitrine voltada para a Via Roma, a principal rua de Lampedusa, metade dela área de pedestres sem pedestres, com o seu casario em tonsde amarelo e laranja, como o restante das construções esquálidas entre as quais serpenteiam ruas esburacadas como as das cidades brasileiras. É estranho que se esteja em território de uma nação com renda per capitade 30 000 euros. Como no Brasil, o passado foi sendo substituído pela feiura da improvisação absoluta. Não sobrou praticamente nada do parco legado dos povos que lá estiveram.
Lampedusa, um ponto que surge do nada
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