Crusoé: Uma dor de cabeça para Milei
Crise nos planos de saúde da Argentina deixa governo em saia justa com medida que desregulamentou o setor em dezembro
A professora aposentada Ana Maria Ferreti, de 80 anos, se habituou a voltar da feira sem as bananas e pêssegos que sempre comprava. Em algumas semanas, a moradora de Olivos, na região metropolitana de Buenos Aires, Argentina, opta por saladas de fruta enlatada.
“A salada de fruta enlatada dura mais dias”, diz a aposentada.
Ana Maria tem racionado as compras no mercado nem tanto pela inflação nas gôndolas quanto para compensar a alavancada nas suas despesas com seu plano de saúde nos últimos meses.
Para não depender do sobrecarregado sistema de saúde pública da Argentina, a professora aposentada é afiliada a um convênio privado, ou pré-paga, como chamam os argentinos. Entre dezembro e março, a mensalidade do seu plano dobrou, indo de cerca de 190.000 a 375.000 pesos, de 1.000 a 2.000 reais.
O plano de saúde passou a consumir cerca de 45% do sustento de Ana Maria, que inclui a aposentadoria dela e a de seu falecido marido. A aposentada não pode se dar ao luxo de não estar filiada a uma pré-paga. Reduzir a cobertura também não é uma opção. “Quando você tem 80 anos, não deixam você mudar de plano”, afirma.
A história de Ana Maria não é uma exceção. Em média, os preços das pré-pagas subiram em 160% no primeiro trimestre de 2024.
Desde dezembro, os convênios de pré-pagas não precisam mais pedir autorização ao Estado para reajustar os seus preços. Essa medida integra o primeiro decreto de necessidade e urgência de Milei, que pode caducar em votação na Câmara dos Deputados, ainda sem data marcada.
Muitos economistas acreditam que a desregulamentação foi abrupta demais. “O governo se apressou. Ele acabou dizendo aos convênios de pré-pagas: ‘Libera tudo isso, façam o que queira’. Então, elas aumentaram os preços como quiseram”, diz Jorge Colina, economista-chefe do Instituto para o Desenvolvimento Social Argentino (IDESA).
Colina explica que os convênios de planos de saúde têm, historicamente, grande poder de barganha no mercado. Segundo uma denúncia de cartelização apresentada em janeiro por um partido da chamada “oposição dialoguista”, dez empresas respondem por mais de 83% do mercado de pré-pagas.
Como o governo reagiu ao aumento dos preços?
A Casa Rosada, que havia ignorado aquela denúncia de janeiro, passou a responsabilizar os convênios de pré-pagas pela crise a partir do início de abril. Primeiro, o ministro da Economia, Luis Caputo, as acusou de “declarar uma guerra à classe média”, em uma postagem no X em 8 de abril.
Nesta quarta, 17, o governo entrou com uma ação cautelar para o setor recalcular o reajuste dos preços. Eles agora deverão voltar aos valores de dezembro, quando se desregulou o setor. E os reajustes passarão a ser atrelados ao índice de inflação geral do Indec, o IBGE argentino.
“Essa é outra decisão incorreta. Afinal, aconteceu um ajuste e agora o setor voltará a estar correndo atrás da inflação”, diz Colina.
Os convênios também foram obrigadas a devolver os montantes cobrados acima da inflação desde dezembro. Enquanto as mensalidades foram reajustadas em 160% nesse período, a inflação foi de 90%.
“Não está claro como se devolverá esse dinheiro, porque parte já foi paga aos médicos”, acrescenta o economista.
Quão necessários eram os reajustes?
O setor das pré-pagas estava sob controle de preços desde 2011. Como diversas outras áreas da economia argentina sob intervenção direta do governo, os preços das pré-pagas estavam defasados. A situação desse setor se agravou ainda mais pela pandemia.
Entre dezembro de 2019 e dezembro de 2023, as mensalidades das pré-pagas subiram 667%, enquanto a inflação geral foi de 1140%, sendo que bens e serviços médicos tiveram reajustes ainda maiores. Por exemplo, medicamentos subiram 1750% e cirurgias de transplante, 1935%.
Os dados são da Acami, uma associação que representa hospitais particulares sem fins lucrativos.
Mesmo antes da desregulamentação de Milei, a sociedade já tinha de pagar por esses preços defasados. Pagos abaixo do valor de mercado pelos convênios de pré-pagas, alguns médicos passaram a cobrar honorários extras aos pacientes ou se recusaram a atendê-los alegando agenda cheia.
“É difícil agendar uma visita ao médico, com filas de espera longas. E, quando você consegue, o médico te cobra um adicional. Isso faz você se pergunta: ‘O que estou pagando e por quê?’”, diz Francesca Capelli, de 54 anos, afiliada de um convênio de pré-paga.
Diretor de uma clínica de hemodiálisis em Córdoba, Hugo Orlando Ledesma explica que “os honorários extras não deveriam ser algo normal. É uma forma dos médicos pressionarem os convênios a repassarem os seus ganhos de maneira proporcional”.
“Por exemplo, um convênio pode pagar ao médico metade do valor do seu trabalho. Uma consulta na Argentina custa por volta de 10 dólares hoje”, acrescenta. É mais fácil para os dez convênios de pré-pagas que controlam o mercado se organizarem e ditarem os preços do que para as dezenas de milhares de instituições médicas privadas que existem na Argentina.
Ledesma e sua clínica faziam essas cobranças extras, chamadas copagos, mas não as realizam mais. Muitos médicos, entretanto, ainda cobram os copagos. Em março, Capelli adiou uma cirurgia de obturação por preferir não pagar os honorários extras. Ela tem uma segunda consulta marcada para esta quinta, 18.
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