Agamenon: Um Conto de Natal
Poucos sabem que antes de me tornar um jornalista vitorioso, cobiçado pelas mulheres e perseguido pela Receita Federal, eu tive uma infância sofrida e miserável. E quando chega a época dos festejos natalinos, eu me recordo com emoção dos meus natais de menino pobretão… Eu era tão pobre e miserável, eu passava tanta necessidade, que o Sebastião Salgado poderia ganhar uma nota preta fazendo um livro caríssimo só com fotos minhas e da minha condição depauperada...Para que o Peru de Natal atinja seu ponto perfeito de cozimento, sabor, consistência e dureza, é necessário que a dona de casa tenha muito cuidado ao manusear os ovos
Poucos sabem que antes de me tornar um jornalista vitorioso, cobiçado pelas mulheres e perseguido pela Receita Federal, eu tive uma infância sofrida e miserável. E quando chega a época dos festejos natalinos, eu me recordo com emoção dos meus natais de menino pobretão… Eu era tão pobre e miserável, eu passava tanta necessidade, que o Sebastião Salgado poderia ganhar uma nota preta fazendo um livro caríssimo só com fotos minhas e da minha condição depauperada.
Eu e minha família morávamos num barraco de 3×4, que dividíamos com duas famílias: uma de retirantes e a outra de colocantes. Nós não tínhamos um endereço certo porque a cada enchente que caía sobre a cidade, o nosso barraco saía boiando como uma arca de Noé desgovernada, até parar em outra freguesia.
A umidade do barraco era intensa, o que piorava a tuberculose da minha mãezinha que ralava dia e noite na máquina de costura para sustentar os vícios do meu pai, que não eram poucos. Meu pai, por sua vez, vivia desempregado e embriagado e, sempre que estava de bom humor, passava os dias nos espancando. Quando minha pobre mãezinha juntava uns trocados, nos mimava comprando um sapato velho para dar um gostinho no feijão.
Eu me lembro de uma antiga noite de Natal, lá em mil novecentos e Dercy Gonçalves. Nevava a cântaros, o frio era terrível e cortante. Eu era um personagem de Dickens e não sabia nem mesmo porque era analfabeto e o único livro que tinha lá em casa um rato metido a intelectual comeu. Para nos esquentar naquele inverno rigoroso, meu pai tacou meu irmãozinho mais novo na lareira, coitado. A nossa ceia de Natal se resumia a uma rala e insossa sopa de osso, um fêmur, que, descobri mais tarde, ser de mamãe, que, sempre extremosa, havia retirado de sua própria perna para não ver seus filhos passarem fome. Enquanto isso, meu pai, sempre egoísta a e cruel, saboreava uma suculenta caixa de bacalhau, sem bacalhau, desfiada. O velho monstro devorava a iguaria sem se importar com o nosso olhar faminto e pidão.
Foi aí que ouvimos batidas secas na porta de papelão do nosso barraco. Quem seria àquela hora, em plena noite de Natal? Seria o Papai Noel? – pensei eu na minha ingenuidade infantil de criança pueril. Mas não. Era o cara das Casas Bahia que veio recolher a máquina de costura da mamãe que estava com a prestação atrasada. Mamãe, aos prantos, se agarrava como podia à fonte de nosso sustento. Mas o insensível prestamista não queria saber e enchia a velha de porrada. Isto deixou meu pai enciumado. Achando que a sua esposa estava dando mole para o sujeito, meu genitor imediatamente partiu pra dentro da minha mãezinha com violência inaudita. Mesmo apanhando mais que palmeirense na torcida do Corinthians, mamãe ainda encontrou forças para ter um violento ataque de hemoptise.
Ao ver aquela cena dantesca, resolvi fazer alguma coisa para acabar com aquela desgraceira digna de manchete do Extra. Assim, peguei minha irmãzinha pela mão e fomos para a rua. Caminhamos horas no meio da neve fria e gelada, pedindo uma esmola ou um pedaço de pão velho, qualquer coisa servia. Nós já estávamos ficando congelados quando, de repente, um homem bondoso resolveu estender a sua mão caridosa e, num gesto de generosidade, comprou a minha irmãzinha de 22 anos na porta da discoteca Help, que, naquela época remota, ainda existia.
Eu mal podia acreditar ao ver na minha mão aquelas duas notas de cinquenta contos de réis. Com lágrimas nos olhos, disparei na direção de casa ainda a tempo de deter o caminhão das Casas Bahia. Sofregamente, coloquei o dinheiro na mão do ganancioso vendedor que me devolveu a máquina de costura. Com o fio de voz que lhe restava, mamãe, emocionada, me agradeceu:
– Agamenon, meu filho, Deus te abençoe! Isto foi um milagre de Natal!
– Milagre é o cacete, mãe! – disse eu. Você está despedida! Na sua vaga, eu vou colocar uma boliviana ilegal,que, para este tipo de trabalho escravo, tem uma produtividade muito maior!
Por isso, todo ano, na noite de Natal, eu vou pro Calçadão da Avenida Atlântica e, sempre que posso, compro uma criatura. Quem sabe assim eu possa estar ajudando alguém que, como eu, também vive duro tal qual um peru de Natal congelado.
Para que o Peru de Natal atinja seu ponto perfeito de cozimento, sabor, consistência e dureza, é necessário que a dona de casa tenha muito cuidado ao manusear os ovos
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