Sigilo de doação eleitoral pode representar retrocesso, afirma especialista
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) deve decidir nas próximas semanas se a Lei Geral de Proteção de Dados sobre a imposição do sigilo das informações de doadores e fornecedores das campanhas eleitorais de 2022...
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) deve decidir nas próximas semanas se a Lei Geral de Proteção de Dados sobre a imposição do sigilo das informações de doadores e fornecedores das campanhas eleitorais de 2022.
No atual entendimento do TSE, os dados eleitorais são públicos e constam na internet desde 2012, em conformidade com as diretrizes de transparência ativa estabelecidas pela Lei de Acesso à Informação (LAI).
A corte criou um grupo de trabalho e tem colhido sugestões sobre o tema. Ainda não há prazo para julgamento em plenário.
Isabela Pompilio, advogada especialista em direito digital, afirmou a O Antagonista que a transparência no financiamento das campanhas é um avanço e um dos pilares da garantia da democracia, mas, em contrapartida, a LGPD prevê a opinião política e filiação como dado sensível que deve ser preservado.
“Conciliar a Lei de Acesso à Informação e a Lei Geral de Proteção de Dados se torna, então, uma discussão interessante entre princípios constitucionais que se chocam, o tão falado neoconstitucionalismo, a ser dirimido pelo TSE”, disse.
Leia a íntegra da entrevista:
Para começar, o que é a lei geral de dados?
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) foi sancionada em 2018 a fim de regulamentar o tratamento, armazenamento e utilização de dados de um cidadão por outra pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado. Com o intuito de possibilitar a adequação daqueles sobre os quais a regulamentação recairia, sua vigência se deu em etapas. Primeiramente houve a criação da ANPD e do CNPD e, por fim, após longo prazo para realização de investimentos às disposições ali previstas, entrou em vigor a aplicação das sanções administrativas, com vigência inicial somente em agosto de 2021.
A senhora pode explicar e esclarecer aspectos da lei no contexto eleitoral?
Entre as Eleições ocorridas em 2018 e as que já estão na iminência de seu acontecimento, a LGPD passou de um Projeto de Lei para uma Lei cujas regulamentações estão em pleno vigor e interferem plenamente nas atividades da sociedade civil, que vive uma era majoritariamente digital. É em razão disso que as imposições trazidas pela LGPD já afetam as práticas de candidatos, partidos e redes sociais, ainda que não tenham alterado o processo eleitoral em si. Lembrando que tal legislação deve ser observada no período pré, durante e pós eleições.
As principais diferenças que ocorrem após a vigência da LGPD são as questões referentes ao uso de dados pessoais dos eleitores. As balizas impostas pela LGPD visam proteger a liberdade e privacidade do eleitorado, cujas informações forem coletadas e tratadas, seja pelo candidato, partido e/ou rede social.
As informações obtidas acerca do eleitor possibilitam a prática de angariar votos, afetar a opinião de um grupo de eleitores sobre determinado assunto – chamado de microtarget – ou, ainda, possibilitar a disseminação de desinformações e polarização política, que afeta de forma gravosa a lisura de todo o procedimento eleitoral.
Além disso, houve a migração das campanhas eleitorais para o mundo digital, aumentando consideravelmente o marketing político nas redes sociais.
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em parceria com a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), lançou a cartilha Guia Orientativo Aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). O que pode se esperar dessa parceria?
O período eleitoral deve ser observado pelas autoridades competentes com zelo, pois, além de englobar considerável circulação de dados pessoais dos candidatos e partidos políticos, envolve a necessidade de desenvolvimento de medidas no sentido de garantir a democracia e a integridade do pleito.
O cerne dessa parceria reside na premissa de que um fato pode acarretar efeitos jurídicos distintos que deem azo a atuação de mais de uma autoridade competente.
Nesse sentido, destaca-se que a ANPD e a Justiça Eleitoral possuem competências de atuação diferentes. A ANPD é responsável por uniformizar e compatibilizar a interpretação do texto legal com a atuação de outros entes públicos. A Justiça Eleitoral, por sua vez, tem a função de garantir o cumprimento das normas previstas na legislação eleitoral – moderação de conteúdo, fiscalização de propaganda eleitoral e aplicação de sanções, por exemplo.
Dessa forma, a parceria entre o TSE e a ANPD tem como objetivo a atuação conjunta para o desenvolvimento de estudos e compartilhamento de experiências nas respectivas áreas de atuação, além do fornecimento de informações claras, com linguagem simples e uniforme a todos os agentes de tratamento que atuam no campo eleitoral e titulares dos dados.
Essa parceria deverá render frutos positivos nas Eleições de 2022, pois tende a refletir uma aplicação fidedigna das disposições da LGPD, na garantia a proteção dos dados pessoais envolvidos, na lisura do processo eleitoral e no debate democrático.
É sabido que o CNJ tem enfrentado dificuldades de compatibilização entre os sistemas dos tribunais brasileiros para o tratamento de dados e, com isso, torna-se moroso o desenvolvimento de um programa de conformidade do Poder Judiciário como um todo, sendo este, provavelmente, um dos desafios a serem enfrentados pela Justiça Eleitoral até o início das eleições. Tarefa bem difícil.
A boa notícia é que historicamente o TSE é o tribunal brasileiro que sai a frente de todos os demais no quesito regulamentação via plataforma digital. Daí essa pronta iniciativa da Corte de se aproximar não só da ANPD, mas também de diversas plataformas digitais, para entabular acordos e dividir conhecimento.
A Justiça Eleitoral, provavelmente, detém o maior cadastro de dados pessoais do país, pois coleta dados de todos os eleitores brasileiros. Como é feito esse controle?
De acordo com os termos dispostos na Política de Privacidade do TSE, os dados coletados são utilizados tão somente para a prestação do serviço relacionado ao próprio dado, para gerar subsídios estatísticos e informações de interesse coletivo.
O tratamento de dados é realizado por equipes que tenham como atribuição funcional a gestão ou operacionalização de cada um dos serviços e o compartilhamento dos dados com outros órgãos deverá ocorrer excepcionalmente, somente para atender finalidades específicas de execução de políticas públicas.
A fiscalização do tratamento de dados é feita pela Corregedoria-Geral da Justiça Eleitoral e pelas corregedorias regionais eleitorais, a fim de garantir o cumprimento das normas dispostas na Lei Geral de Proteção de Dados.
Como os dados pessoais são usados em campanhas eleitorais?
A preferência ou a filiação política é considerada pela LGPD um dado sensível e, por isso, terá de ser exigido do eleitor seu consentimento expresso para, por exemplo, a utilização de seus dados pessoais para fazer parte de listagem de disparos de propaganda em massa.
Assim sendo, o TSE vem editando resoluções visando um ambiente eleitoral democrático, sem abuso de campanhas políticas digitais decorrentes de poder econômico e informações em massa de um único partido que viciam o eleitor e o impossibilitam de refletir e, ao final, escolher livremente dentre os vários candidatos.
Partidos políticos e plataforma digitais terão, então, em respeito a LGPD, que se estruturar para garantir a utilização dos dados pessoais dos eleitores de forma segura, observando fielmente a finalidade para qual foram coletados, em um ambiente eleitoral transparente e democrático.
Como pode alguém ser punido por violação à LGPD?
A violação dos direitos do cidadão e dos deveres previstos na LGPD acarretará a aplicação de penalidades que poderão ser impostas após devido processo administrativo, observado o direito de defesa e as peculiaridades de cada caso.
Em que pese a possibilidade de aplicação de multa com um teto de 50 milhões chamar a atenção à primeira vista, as sanções, bem como os valores, variam de acordo com o ato praticado: desde advertências e multas, até a suspensão ou proibição, parcial ou total, do exercício de atividades relacionadas ao tratamento de dados – o que, para algumas empresas, pode significar, inclusive, o encerramento da própria atividade empresarial.
O TSE vai decidir sobre sigilo de doação eleitoral. Você acredita que isso representa um retrocesso?
Acredito que sim. A transparência no financiamento das campanhas é um avanço e um dos pilares da garantia da democracia, mas, em contrapartida, a LGPD prevê a opinião política e filiação como dado sensível que deve ser preservado.
Conciliar a Lei de Acesso à Informação e a Lei Geral de Proteção de Dados se torna, então, uma discussão interessante entre princípios constitucionais que se chocam, o tão falado neoconstitucionalismo, a ser dirimido pelo TSE.
Todavia, é imprescindível ponderar que os dados de doadores são de interesse público e a transparência é essencial para a apuração de eventuais irregularidades nas doações e para que os eleitores tenham ciência de quem são os financiadores das campanhas eleitorais. Essas informações certamente influenciam na escolha do voto e impactam no debate democrático. Um interesse coletivo que deve se sobrepor a uma garantia individual.
A construção da LGPD surgiu pela demanda da proteção de dados pessoais mediante inúmeros vazamentos e ataques cibernéticos. Alguns especialistas acreditam que as Cortes eleitorais ainda estão um passo atrás na evolução de tecnologias. O que você acha? Por quê?
O desenvolvimento de novas tecnologias, além de proporcionar mecanismos de proteção de dados, infelizmente também possibilita a criação de novas formas de ataques cibernéticos, tendo se tornado a maior ameaça mundial, no quesito fraude. Particulares, empresas e órgãos governamentais estão na mira dos hackers e a polarização política termina por incentivar ataques cibernéticos a órgãos governamentais, incluindo o Judiciário
Após a denúncia de ocorrência de ataque cibernético durante as Eleições de 2020, a Área de Tecnologia da Informação do TSE vem adotando medidas a fim de modernizar e tornar ainda mais transparente o processo eleitoral, além de ter criado uma Comissão de Segurança da Informação cuja função é de desenvolver medidas e otimizar operações de tratamento de dados a fim garantir o sigilo das informações. Não há dúvidas de que esforços estão sendo envidados, ainda mais depois toda a celeuma criada politicamente sobre o tema.
Sendo assim, ainda que alguns especialistas entendam que as Cortes eleitorais ainda estão a um passo atrás na evolução de tecnologias, até mesmo por questões orçamentárias já que, em se tratando de tecnologia, o céu é o limite, fato é que o TSE tem adotado medidas no combate a ataques cibernéticos, a fim de garantir a proteção dos dados dos eleitores e a lisura das Eleições de 2022.
WhatsApp e Facebook entenderam que tem papel na regulação da ferramenta para não deturpar a democracia e limitaram o compartilhamento de conteúdo. Porém, o Telegram ainda é um calo para os tribunais eleitorais. Como ficam a LGPD e o Telegram, que não é regulamentado?
Infelizmente, quanto mais longo e demorado o silêncio do Telegram, mais necessário vem se tornando o enfrentamento da questão.
Hoje, como o Telegram não possui escritório no Brasil e ignora as autoridades brasileiras, leva a crer que, durante as eleições, também não irá cumprir determinações do TSE, desequilibrando o debate político.
Se, por um lado, não há disposição legal que obrigue a plataforma a ter escritório no Brasil (apenas as plataformas que comercializam anúncios precisam tê-lo), por outro, o Marco Civil da Internet dispõe expressamente que os provedores de aplicação ao coletar, armazenar, guardar e tratar registros de dados pessoais deverão obrigatoriamente respeitar a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros. Em não o fazendo, poderão, em casos extremos, ser suspensos ou mesmo banidos do país.
Ou seja, em havendo decisões judiciais descumpridas pelo Telegram, inclusive por mau uso ou mesmo vazamento de dados pessoais, viável se tornará a aplicação da pena de suspensão das atividades da plataforma.
Apesar da politização da discussão, eventual decisão nesse sentido teria, portanto, embasamento legal, apesar de não ser uma medida simpática, já que interfere em um serviço privado, prejudicando usuários que o utilizam licitamente. Não bastasse, desestimula a inovação e ainda termina por incitar mais decisões judiciais de bloqueio de serviços diversos por descumprimento mínimo de decisões.
A verdade é que, com o avanço do mundo virtual, precisará haver a ressignificação, por todos os países, dos conceitos de soberania e território, com uma regulação do mundo digital como um todo, para que questões como esta tenham solução rápida, com menos desgaste político e interferência econômica entre o público e o privado e trazendo até mesmo paridade de obrigações entre os players do mercado.
Qual a base de tratamento para o impulsionamento de conteúdo?
O impulsionamento de conteúdo por meio das plataformas digitais se tornou uma ferramenta poderosa para o alcance de um maior número de eleitores e é uma exceção conferida, por lei, à regra de proibição de divulgação de propaganda eleitoral paga na internet.
Todavia, como já explanado, sendo o impulsionamento pago ou não, há a obrigatoriedade de consentimento expresso para a utilização dos dados pessoais dos eleitores para disparo de propagandas em massa. Além disso, é indispensável que haja identificação do CNPJ do partido ou candidato ou o CPF do responsável financeiro da campanha, e que o conteúdo não seja com o intuito de prejudicar candidaturas adversárias.
A base dessa regra decorre tanto da legislação eleitoral, quanto da LGPD, a fim de garantir a privacidade dos eleitores, bem como a identificação e a responsabilização de eventuais infratores.
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