Exclusivo: por dentro da crise yanomami
Uma questão urgente. Há décadas. O sofrimento do povo yanomami voltou a comover o país, por meio de imagens chocantes de indígenas esquálidos. Em resposta, o governo federal convocou uma ação emergencial interministerial para intervir na...
Uma questão urgente. Há décadas. O sofrimento do povo yanomami voltou a comover o país, por meio de imagens chocantes de indígenas esquálidos. Em resposta, o governo federal convocou uma ação emergencial interministerial para intervir na maior reserva indígena do país, em Roraima.
Os problemas não são novos ou desconhecidos. A complexa crise sanitária e humanitária que envolve os yanomami está diretamente ligada às atividades de garimpo ilegais na região. estima-se que haja 20 mil garimpeiros trabalhando na região — no passado, já foram 40 mil.
Contratada pelo programa Médicos pelo Brasil há oito meses, Ana Caroline Marques — indígena tupinikim de Aracruz, no Espírito Santo — é a única médica na Unidade Básica de Saúde da região de Auaris. Em entrevista a O Antagonista, ela relata que chega a fazer até 100 atendimentos por dia, incluindo pacientes com quadros graves de desnutrição.
“Falta sempre alguma coisa. Na última quinzena, quis desistir, porque foi uma situação que faltou até alimento para os pacientes. Logo de início eu sempre questionei essa situação de Atenção Básica, em uma região que não é possível prestar apenas Atenção Básica. Mais de 80% das crianças estão em estado de desnutrição”, desabafa.
Responsável por uma área com cerca de 3,6 mil indígenas, a médica diz que falta de tudo e tenta fazer o possível para conseguir atender seus pacientes com um mínimo de dignidade.
“Eu estou habituada, desde a minha primeira entrada, [ao fato de] que certas medicações faltam. Teve situações em que faltou cloroquina. Já chegou a faltar soro de reidratação oral. Falta muitas vezes oxigênio.”
Ela aproveita ainda para esclarecer as fake news espalhadas por bolsonaristas nas redes sociais, que dizem que os yanomami desnutridos não são brasileiros, mas venezuelanos, já que se trata de uma região de fronteira.
“Essa mensagem, que estão querendo passar, é uma mensagem distorcida, porque o distrito realmente vive uma situação de desnutrição em massa e que… Pode ter algum Venezuelano? Não dá para negar que isso não seja possível, mas a maioria é realmente brasileiro do Distrito Yanomami”, diz.
Esse é apenas um pedaço dos problemas que se espalham pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-Y), que atende mais de 27 mil indígenas de 366 aldeias. Para o procurador da República do Ministério Público Federal de Roraima Alisson Marugal, o caso precisa ser tratado como uma crise de subnutrição crônica.
“O que nós assistimos de novo nesses últimos anos é o falecimento dessas crianças por causas que estão conectadas à subnutrição. Dificilmente uma criança morre de subnutrição… Morre, mas geralmente existem outras doenças associadas: malária, diarréia, verminose. São doenças oportunistas, que se instalam no corpo com a imunidade bastante debilitada, em função da subnutrição, e essas crianças acabam vindo a falecer”, explica.
O avanço do garimpo ilegal nos últimos anos assombra e mostra que o problema vai muito além, impactando de forma significativa no desenvolvimento e funcionamento das comunidades indígenas. Muitas unidades de saúde tiveram de ser fechadas por causa de conflitos.
“Se pegarmos todos os alertas que o nossos sistemas geram, a partir do desmatamento por atividade de extração ilegal de minério, nós observamos que, gradativamente, o garimpo vem crescendo a partir de 2017. Alcançando seus picos em 2021 e 2022”, explica Marugal.
No ano de 2015, o Conselho Indígena de Roraima (CIR), que representava 10 povos indígenas na época, publicou um manifesto com duras críticas ao governo de Dilma Rousseff, considerada inimiga do povo yanomami, por ceder à pressão da bancada ruralista e mudar o método de demarcação das terras indígenas.
No mesmo ano, Davi Kupenawa Yanomami falou no plenário do Senado Federal sobre como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que permitiria que apenas o Congresso Nacional demarcasse as áreas, seria prejudicial ao povo.
“Essa PEC não vai trazer benefício para indígena que mora nas florestas. Vai trazer problema, briga, a doença. As Terras estão demarcadas. Não pode cortar. Não pode diminuir. Porque a terra é dos povos indígenas. Faz tempo que nós preservamos, que cuidamos. Sabemos cuidar. Sabemos cuidar da nossa floresta”, disse.
Na última segunda-feira (23), no Papo Antagonista, o filho mais velho de Davi, Dário Kopenawa Yanomami, ressaltou o uso político de uma situação crônica cuja solução, segundo ele, passa pela expulsão dos garimpeiros.
“Sem garimpo, o meu povo yanomami não estaria nessa situação. Isso não aconteceria. Então isso, o problema que nós estamos enfrentando, [é] cicatriz do garimpo ilegal na Terra Yanomami”, explica.
Em seu primeiro ano de mandato como deputado federal, o ex-presidente Jair Bolsonaro já ocupava o plenário da Câmara dos Deputados para protestar contra os yanomami, conforme gravação em áudio de 16 de janeiro de 1992 obtida por O Antagonista. Ouça:
Em 1998, o então deputado Bolsonaro disse que o Exército Brasileiro foi incompetente por não ter aniquilado os povos originários, conforme publicado no diário da Câmara. “Até vale uma observação neste momento (…) Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema em seu país”.
A reportagem procurou o ex-coordenador da DSEI-Y Rômulo Pinheiro, que esteve à frente do órgão na gestão Bolsonaro, entre junho de 2020 a janeiro de 2022, quando foi exonerado, por solicitação própria após denúncias de falta de assistência adequada aos indígenas. Para ele, a burocracia e a logística são grandes dificuldades para atender a região.
“Todos os meios e esforços que nós podíamos empreender foram empregados. Quando entrei, a gente viu um Distrito bastante sucateado. A verdade é essa. Principalmente nas suas estruturas físicas e processos de aquisições de insumos, de medicamentos ou de materiais médicos, de insumos de gás de cozinha. Processos que a gente perguntava: por que ainda estão parados? Por que não foi dada uma celeridade e uma atenção especial?”, relata.
Nesta semana, o secretário de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, Ricardo Tapera, disse em entrevista coletiva que um plano estratégico interministerial nortearia as ações para a recuperação da saúde da população indígena de Roraima.
“Infelizmente, os dados que apareceram são alarmantes. E acreditamos que há, inclusive, uma subnotificação muito grande. Estamos tentando organizar essa operação de coordenação das ações realizadas no território”, diz.
Enquanto isso, a Fundação Nacional do Índio (Funai) promove uma “desbolsonarização”, ao publicar no Diário Oficial de segunda-feira (23) a exoneração de 43 militares de carreira nomeados pelo governo anterior para gerir o órgão de proteção e promoção dos direitos indígenas.
Exclusivo: por dentro da crise yanomami
Uma questão urgente. Há décadas. O sofrimento do povo yanomami voltou a comover o país, por meio de imagens chocantes de indígenas esquálidos. Em resposta, o governo federal convocou uma ação emergencial interministerial para intervir na...
Uma questão urgente. Há décadas. O sofrimento do povo yanomami voltou a comover o país, por meio de imagens chocantes de indígenas esquálidos. Em resposta, o governo federal convocou uma ação emergencial interministerial para intervir na maior reserva indígena do país, em Roraima.
Os problemas não são novos ou desconhecidos. A complexa crise sanitária e humanitária que envolve os yanomami está diretamente ligada às atividades de garimpo ilegais na região. estima-se que haja 20 mil garimpeiros trabalhando na região — no passado, já foram 40 mil.
Contratada pelo programa Médicos pelo Brasil há oito meses, Ana Caroline Marques — indígena tupinikim de Aracruz, no Espírito Santo — é a única médica na Unidade Básica de Saúde da região de Auaris. Em entrevista a O Antagonista, ela relata que chega a fazer até 100 atendimentos por dia, incluindo pacientes com quadros graves de desnutrição.
“Falta sempre alguma coisa. Na última quinzena, quis desistir, porque foi uma situação que faltou até alimento para os pacientes. Logo de início eu sempre questionei essa situação de Atenção Básica, em uma região que não é possível prestar apenas Atenção Básica. Mais de 80% das crianças estão em estado de desnutrição”, desabafa.
Responsável por uma área com cerca de 3,6 mil indígenas, a médica diz que falta de tudo e tenta fazer o possível para conseguir atender seus pacientes com um mínimo de dignidade.
“Eu estou habituada, desde a minha primeira entrada, [ao fato de] que certas medicações faltam. Teve situações em que faltou cloroquina. Já chegou a faltar soro de reidratação oral. Falta muitas vezes oxigênio.”
Ela aproveita ainda para esclarecer as fake news espalhadas por bolsonaristas nas redes sociais, que dizem que os yanomami desnutridos não são brasileiros, mas venezuelanos, já que se trata de uma região de fronteira.
“Essa mensagem, que estão querendo passar, é uma mensagem distorcida, porque o distrito realmente vive uma situação de desnutrição em massa e que… Pode ter algum Venezuelano? Não dá para negar que isso não seja possível, mas a maioria é realmente brasileiro do Distrito Yanomami”, diz.
Esse é apenas um pedaço dos problemas que se espalham pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-Y), que atende mais de 27 mil indígenas de 366 aldeias. Para o procurador da República do Ministério Público Federal de Roraima Alisson Marugal, o caso precisa ser tratado como uma crise de subnutrição crônica.
“O que nós assistimos de novo nesses últimos anos é o falecimento dessas crianças por causas que estão conectadas à subnutrição. Dificilmente uma criança morre de subnutrição… Morre, mas geralmente existem outras doenças associadas: malária, diarréia, verminose. São doenças oportunistas, que se instalam no corpo com a imunidade bastante debilitada, em função da subnutrição, e essas crianças acabam vindo a falecer”, explica.
O avanço do garimpo ilegal nos últimos anos assombra e mostra que o problema vai muito além, impactando de forma significativa no desenvolvimento e funcionamento das comunidades indígenas. Muitas unidades de saúde tiveram de ser fechadas por causa de conflitos.
“Se pegarmos todos os alertas que o nossos sistemas geram, a partir do desmatamento por atividade de extração ilegal de minério, nós observamos que, gradativamente, o garimpo vem crescendo a partir de 2017. Alcançando seus picos em 2021 e 2022”, explica Marugal.
No ano de 2015, o Conselho Indígena de Roraima (CIR), que representava 10 povos indígenas na época, publicou um manifesto com duras críticas ao governo de Dilma Rousseff, considerada inimiga do povo yanomami, por ceder à pressão da bancada ruralista e mudar o método de demarcação das terras indígenas.
No mesmo ano, Davi Kupenawa Yanomami falou no plenário do Senado Federal sobre como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que permitiria que apenas o Congresso Nacional demarcasse as áreas, seria prejudicial ao povo.
“Essa PEC não vai trazer benefício para indígena que mora nas florestas. Vai trazer problema, briga, a doença. As Terras estão demarcadas. Não pode cortar. Não pode diminuir. Porque a terra é dos povos indígenas. Faz tempo que nós preservamos, que cuidamos. Sabemos cuidar. Sabemos cuidar da nossa floresta”, disse.
Na última segunda-feira (23), no Papo Antagonista, o filho mais velho de Davi, Dário Kopenawa Yanomami, ressaltou o uso político de uma situação crônica cuja solução, segundo ele, passa pela expulsão dos garimpeiros.
“Sem garimpo, o meu povo yanomami não estaria nessa situação. Isso não aconteceria. Então isso, o problema que nós estamos enfrentando, [é] cicatriz do garimpo ilegal na Terra Yanomami”, explica.
Em seu primeiro ano de mandato como deputado federal, o ex-presidente Jair Bolsonaro já ocupava o plenário da Câmara dos Deputados para protestar contra os yanomami, conforme gravação em áudio de 16 de janeiro de 1992 obtida por O Antagonista. Ouça:
Em 1998, o então deputado Bolsonaro disse que o Exército Brasileiro foi incompetente por não ter aniquilado os povos originários, conforme publicado no diário da Câmara. “Até vale uma observação neste momento (…) Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema em seu país”.
A reportagem procurou o ex-coordenador da DSEI-Y Rômulo Pinheiro, que esteve à frente do órgão na gestão Bolsonaro, entre junho de 2020 a janeiro de 2022, quando foi exonerado, por solicitação própria após denúncias de falta de assistência adequada aos indígenas. Para ele, a burocracia e a logística são grandes dificuldades para atender a região.
“Todos os meios e esforços que nós podíamos empreender foram empregados. Quando entrei, a gente viu um Distrito bastante sucateado. A verdade é essa. Principalmente nas suas estruturas físicas e processos de aquisições de insumos, de medicamentos ou de materiais médicos, de insumos de gás de cozinha. Processos que a gente perguntava: por que ainda estão parados? Por que não foi dada uma celeridade e uma atenção especial?”, relata.
Nesta semana, o secretário de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, Ricardo Tapera, disse em entrevista coletiva que um plano estratégico interministerial nortearia as ações para a recuperação da saúde da população indígena de Roraima.
“Infelizmente, os dados que apareceram são alarmantes. E acreditamos que há, inclusive, uma subnotificação muito grande. Estamos tentando organizar essa operação de coordenação das ações realizadas no território”, diz.
Enquanto isso, a Fundação Nacional do Índio (Funai) promove uma “desbolsonarização”, ao publicar no Diário Oficial de segunda-feira (23) a exoneração de 43 militares de carreira nomeados pelo governo anterior para gerir o órgão de proteção e promoção dos direitos indígenas.