O ‘conselhismo’ está de volta
Lula subiu a rampa do Palácio do Planalto acompanhado de gente comum e recebeu a faixa de uma jovem negra. Quis passar a mensagem que o governo estará aberto à participação dos cidadãos. Pouco mais tarde, ao assinar seus primeiros despachos na presidência, Lula indicou como essa participação deve acontecer no dia a dia da administração pública...
Lula subiu a rampa do Palácio do Planalto acompanhado de gente comum e recebeu a faixa de uma jovem negra. Quis passar a mensagem que o governo estará aberto à participação dos cidadãos.
Pouco mais tarde, ao assinar seus primeiros despachos na presidência, Lula indicou como essa participação deve acontecer no dia a dia da administração pública.
Ele pediu que o ministro da Casa Civil, Rui Costa, e ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, apresentem em 45 dias um novo projeto de regulamentação para o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), salvando-o do “esvaziamento” e garantindo “a ampla participação da sociedade na definição das políticas ambientais do país”.
O PT prega o “conselhismo” tanto quanto Jair Bolsonaro o execrava.
Foi também no comecinho de seu governo, em 2019, que o agora ex-presidente deu cabo da Política Nacional de Participação Popular, criada por Dilma Rousseff, passando então a extinguir conselhos, comitês e comissões às dezenas.
Numa primeira tacada, 55 colegiados foram encerrados por estarem, segundo o governo, “inativos, paralisados ou com escopo exaurido”. Em abril de 2022, um relatório da ONU estimou que 650 órgãos desse tipo haviam sido liquidados pelo governo Bolsonaro até ali.
Por decisão do STF, ainda em 2019, Bolsonaro ficou proibido de extinguir conselhos que tivessem sido criados por lei. Nesses casos, ele usou a caneta para alterar suas estruturas.
O Conama é um bom exemplo: passou abruptamente de 96 integrantes para 23; no ano passado, voltou a crescer um pouco, para 36.
Bolsonaro também segurou muitas nomeações, o que “esvaziou” alguns conselhos (para usar a palavra de Lula) e até mesmo os impediu de tomar decisões por falta de quórum.
Lula quer reverter tudo isso, recriando o que foi desfeito, ampliando o que foi enxugado e, provavelmente, abrindo alguns espaços novos para dar representação a grupos que antes não estavam contemplados.
Se algum dia existiu uma filosofia por trás da “desconselhização” realizada por Bolsonaro foi a de que trazer para dentro do Estado as discussões entre grupos de interesse era menos importante do que reduzir o tamanho e a presença do Estado em diversos setores e exterminar regulamentações (aquilo que ficou conhecido como “passar a boiada”, na frase imortal de Ricardo Salles).
Na prática, a extinção ou a paralisação de conselhos, casada com extinção ou a paralisação de órgãos de fiscalização, serviu para que o governo Bolsonaro pudesse agir rapidamente como bem entendesse e para que alguns grupos específicos – como garimpeiros e madeireiros ilegais – se sentissem livres para barbarizar.
Nesse caso, a reativação do Conama e seus congêneres é uma boa notícia, certo?
Não há dúvida nenhuma que a presença de pessoas com experiências e conhecimentos especiais em conselhos ajudou a melhorar ou, em vários casos, até mesmo instituir políticas públicas que não existiriam de outra forma. O tratamento dado a idosos, pessoas com deficiência ou crianças forçadas a trabalhar seria ainda pior no Brasil se conselhos dedicados a eles não mantivessem o radar ligado permanentemente.
Mas também é verdade que conselhos não são uma panacéia, que o seu funcionamento está longe de ser eficiente na maioria dos casos e que eles se prestam ao aparelhamento – são uma ferramenta para cooptar o apoio de grupos sociais. O PT é craque nisso.
Em 2014, no começo de seu segundo mandato, Dilma Rousseff tentou dar aos colegiados do governo federal o poder de aprovar a execução de políticas públicas. Assim, uma lei do Congresso poderia não ter efeito porque conselhos e comitês pensavam de maneira oposta. O decreto foi apelidado de “bolivariano”, por tentar imitar os métodos de democracia direta da Venezuela.
Naquela época, o repórter Daniel Jelin, que trabalhava comigo na Veja, fez um mergulho no mundo dos conselhos e o que trouxe à tona não foi nada animador. Eles tendiam a ser dominados por representantes do governo ou de grupos alinhados ao PT. A despeito de um grande número de integrantes, uma minoria superengajada costumava prevalecer nas decisões. Narrou-se um caso que acontecera havia pouco tempo, no qual o Comitê Gestor da Internet (CGI.br) foi capturado por cooperativas e associações comunitárias alheias ao seu tema central.
Criado em 1981 e portanto o mais antigo dos conselhos federais, o Conama também aparecia na reportagem.
Naquele época, ele tinha 108 titulares. Era maior que o Senado e, como o Senado, tinha oposição, situação e bancadas temáticas. Nas reuniões, gastava-se muito tempo com discussões que nada tinham a ver com meio ambiente. Por causa disso, a presença acabava sendo baixa em momentos importantes. Apenas 10 membros haviam comparecido a todas as reuniões plenárias de 2014.
A ineficiência do conselho levou um entrevistado a dizer: “O Conama parou.” E ainda nem havia Bolsonaro.
É falsa, portanto, a ideia de que basta aumentar o número de representantes nos muitos colegiados da máquina pública para garantir que ela será mais democrática e que a sociedade civil será ouvida nas decisões políticas. A sociedade civil com voz pode acabar sendo aquela que interessa ao PT.
Não se trata de ter conselhos grandes ou pequenos, mas de ter conselhos que funcionem. A experiência anterior do PT no governo não lhe permite dizer que sabe como certificar que isso aconteça.
É preciso exigir que o governo explique melhor o que pretende obter dos conselhos, para além de generalidades como “ampliar a democracia participativa”, e se tem propostas para melhorar a governança deles.
Se for apenas para permitir que o PT bata no peito e se apresente como “o partido do povo”, é melhor ficar com as fotos de Lula cercado por minorias.
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