É preciso pôr em pratos limpos se houve armação contra a Globo
Uma das táticas mais utilizadas por regimes autoritários é utilizar o aparelho policial e judiciário para intimidar e ferir adversários políticos e imprensa independente. Mesmo em regimes democráticos como o nosso, no entanto, ela pode ser empregada por gente sem escrúpulos. Por isso, é preciso que haja vigilância constante da sociedade e das instâncias de controle...
Uma das táticas mais utilizadas por regimes autoritários é utilizar o aparelho policial e judiciário para intimidar e ferir adversários políticos e imprensa independente. Mesmo em regimes democráticos como o nosso, no entanto, ela pode ser empregada por gente sem escrúpulos. Por isso, é preciso que haja vigilância constante da sociedade e das instâncias de controle.
O que ocorreu em meados deste mês com a divulgação de parte da delação de Dario Messer, o doleiro dos doleiros, merece ser investigado com rigor. A revista Veja publicou que ele havia delatado Roberto Irineu Marinho e João Roberto Marinho, donos do Grupo Globo. Eles teriam sido destinatários, ao longo da década de 1990, de grandes somas em espécie entregues pelo esquema de Messer na sede da TV Globo, no Rio de Janeiro. As entregas feitas em moeda nacional teriam sido pagas em Nova York, por meio de contas não declaradas às autoridades brasileiras.
Depois que a história foi publicada, Jair Bolsonaro fez uma conta de padaria no Twitter e acusou a Globo de ter recebido ilegalmente 1,75 bilhão de dólares — e, obviamente, a acusação foi replicada incessantemente pelos seus seguidores no Twitter e a imprensa amiga do presidente da República.
No dia 17 de agosto, com o carnaval bolsonarista em curso, escrevi o seguinte:
“A história envolvendo dois dos donos da Rede Globo pode ser saborosa para os bolsonaristas, mas não interessa à Justiça e, pelo que foi publicado, não existem provas dela. Messer afirmou em depoimento que, ao longo da década de 90, mandava entregar o equivalente a 50 mil a 300 mil dólares, de duas a três vezes por mês, a Roberto Irineu Marinho e João Roberto Marinho, na sede da Rede Globo. De acordo com Messer, ele era pago no exterior pelo serviço. Ambos os donos da Globo emitiram nota, dizendo que jamais tiveram contas não declaradas no exterior e nunca realizaram operações de câmbio não declaradas às autoridades brasileiras.
A história não interessa à Justiça porque, mesmo que fosse verdadeira, os eventuais crimes de sonegação fiscal e evasão de divisas estariam prescritos. Prescrição por si só não torna ninguém inocente, obviamente, mas apenas os casos nos quais há chance de punição são levados em conta em processos, e esse ponto é ainda mais relevante se eles forem narrados e documentados por alguém que foi beneficiado com uma redução de pena justamente por ajudar a Justiça.
Em tempo, a divulgação do depoimento de Messer sobre os Marinho foi interpretada como um presente a Bolsonaro. Presente de um senhor que agora brinca de ser tycoon da imprensa e tem grande interesse em desmoralizar a Lava Jato.”
Na edição desta semana, a Crusoé apurou que “ao acompanhar a negociação da delação premiada do doleiro Dario Messer, a Procuradoria-Geral da República demonstrou um interesse especial pela parte em que ele menciona supostas entregas de dinheiro na sede da Rede Globo, no Rio de Janeiro. Fontes próximas ao caso dizem que auxiliares de Augusto Aras se esforçaram para que esse assunto virasse um capítulo da delação. Essas mesmas fontes viram no movimento uma tentativa de agradar ao presidente Jair Bolsonaro, dando a ele alguma munição para atacar a Globo”.
Curiosamente, também na sua última edição, a própria Veja publicou que “investigadores devem arquivar anexos sem provas ou que tratam de crimes prescritos, caso das acusações contra a Globo. O doleiro gasta mais de vinte páginas da delação com histórias dos anos 80 e 90 e crimes que ‘acha’ e que ‘talvez’ aconteceram”.
O que mudou de lá para cá? Nada. A história de Messer já não se sustentava quando foi publicada — e, como apontei, se crimes houvessem ocorrido, eles já teriam prescrito. O que não vai prescrever nunca é o aproveitamento político que Bolsonaro fez e provavelmente continuará fazendo do episódio, com o PT o acompanhando em tom festivo. O aproveitamento é motivo suficiente para que o Conselho Nacional do Ministério Público investigue se procuradores realmente forçaram a barra para que a história em relação à Globo se tornasse um capítulo da delação de Messer — capítulo tão efêmero que já foi para o lixo, mas bastante eficaz para atingir a reputação da emissora que Bolsonaro considera a sua principal inimiga. Aliás, é lícito supor que a história já havia ido para o lixo quando veio à tona na imprensa, o que torna tudo ainda mais sórdido.
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