A condenação de Deltan Dallagnol e a Justiça do cala a boca
Punido pelo Conselho Nacional do Ministério Público, o procurador Deltan Dallagnol só cometeu um erro nessa história toda: o de acreditar que a alternativa a Renan Calheiros na presidência do Senado não seria também uma ameaça ao combate à corrupção no Brasil. A esta altura, Davi Alcolumbre dispensa apresentações. Dallagnol foi punido com censura, o que na prática significa ficar um ano sem poder ser promovido...
Punido pelo Conselho Nacional do Ministério Público, o procurador Deltan Dallagnol só cometeu um erro nessa história toda: o de acreditar que a alternativa a Renan Calheiros na presidência do Senado não seria também uma ameaça ao combate à corrupção no Brasil. A esta altura, Davi Alcolumbre dispensa apresentações.
Dallagnol foi punido com censura, o que na prática significa ficar um ano sem poder ser promovido. É um absurdo ululante porque, ao contrário do que querem fazer crer os invertebrados morais, ele não ultrapassou linha nenhuma ao tuitar sobre Renan Calheiros. Apenas fez a constatação do que representa o senador alagoano. O nome da punição — censura — é adequado ao que estamos vivenciando na nossa castigada democracia. Estamos sujeitos à Justiça do cala a boca. Não, o cala a boca não morreu, está bem vivo sob os auspícios do Supremo Tribunal Federal.
Os pontos estão ligados. O STF ressuscitou o cala a boca com o inquérito do fim do mundo aberto por Dias Toffoli, conduzido por Alexandre de Moraes e constitucionalizado pela quase unanimidade do plenário da corte. No âmbito do inquérito para apurar supostas ameaças ao STF, a Crusoé e este site foram censurados por publicar reportagem baseada em documento oficial e cidadãos ofensivos nas palavras mas inofensivos nos atos foram calados nas redes sociais por terem criticado a corte, como se fossem iguais aos extremistas que merecem ser investigados. A censura não é cega como a verdadeira Justiça, apenas finge que tem os olhos vendados.
Ressurreto o cala a boca, ele se espraiou: a Crusoé voltou a ser censurada — e assim permanece –, agora a pedido da deputada bolsonarista Bia Kicis, que não gostou de ver publicado o fato de que ela perdera o ímpeto para lutar pela aprovação da prisão de condenados em segunda instância. A desembargadora que recusou o recurso da revista disse comicamente que a tarja preta sobre o nome da deputada, uma das opções impostas pela Justiça (a outra era tirar a reportagem do ar), não configurava censura. Na semana passada, foi a vez de a Rede Globo ser amordaçada por um juiz: ele proibiu que a reportagem da emissora divulgasse documentos do processo que investiga o suposto esquema de rachadinha do suposto senador Flávio Bolsonaro.
A censura formal e a consequente censura à liberdade de expressão infligidas a Deltan Dallagnol pelo CNMP — censuras que tiveram o caminho aberto por Gilmar Mendes — incluem-se nessa tendência perigosa. Ao contrário do que disseram nove pares de Deltan Dallagnol, procuradores podem, sim, pronunciar-se publicamente sobre assuntos de estado, sejam quais forem. Eles não são juízes, são parte; não julgam, mas acusam e denunciam. É quase uma obrigação que amplifiquem a sua voz. Como disse o ministro Celso de Mello, “a garantia à livre manifestação do pensamento – um dos dogmas estruturantes do Estado democrático de Direito – revela-se como elemento fundamental ao exercício independente das funções do Ministério Público”.
A Justiça do cala a boca perpetra o pior tipo de censura, porque contra ela o único recurso disponível é a boa vontade de um ou outro togado. Na Justiça do cala a boca, magistrados se consideram editores, como Dias Toffoli deixou explicitado sem qualquer rubor. Com a Justiça do cala a boca, os criminosos podem agir ainda mais livremente (e comemorar a punição dos seus algozes). Se ainda há juízes em Brasília, é preciso conter esse tumor tentacular. Eles deveriam ter em mente que, ao censurar, a Justiça não condena apenas a democracia. Condena a si própria no tribunal da história, onde não existe prescrição.
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