“Unburdened”: O que significa o estranho bordão de Kamala Harris
Frase usada como mantra pela vice de Biden gera compilações, dúvidas e ironias nas redes sociais
Kamala Harris (à esquerda na foto) , a vice de Joe Biden (à direita na foto) apoiada pelo presidente dos Estados Unidos para assumir a cabeça de chapa após o anúncio de sua desistência da corrida eleitoral no domingo, 21 de julho, repetiu com tanta frequência uma mesma frase ao longo dos últimos anos que a compilação de suas repetições vem rendendo numerosas dúvidas e ironias nas redes sociais.
A primeira compilação, com um minuto e dezessete segundos, foi publicada em 25 de abril de 2023 pela conta Mazemoore, que edita vídeos para satirizar o Partido Democrata.
A conta RCN Research, administrada pela equipe de campanha de Donald Trump e pelo Comitê Nacional Republicano, publicou cinco dias depois uma versão ampliada, de três minutos e meio, que depois chegaria a quatro em outras contas, como Genius Bot X, até ser assim publicada pela RCN em 17 de dezembro.
“Quatro minutos de Kamala. Eu desafio você a ouvir isso sem quebrar um molar…”, ironizou, por exemplo, o ator republicano James Woods, cujo compartilhamento rendeu 7 milhões de visualizações.
“Alguém sabe o que ela quer dizer?”, perguntou o jornalista camaronês Simon Ateba, correspondente na Casa Branca de um portal africano, rendendo mais 2 milhões.
Até os americanos têm dificuldades para explicar.
“Unburden”
Nos vídeos, Kamala fala da nossa capacidade de enxergar “what can be, unburdened by what has been”, trecho repetido em diversas ocasiões, com os mesmos tons e movimentos de cabeça e braços, percebidos no campo da direita como demagogia. “Burden” significa carga pesada ou fardo carregado por alguém. “Unburden” é o ato de remover a carga pesada ou o fardo, de livrar(-se) ou aliviar(-se) do peso. Kamala devaneia, portanto, sobre a capacidade de enxergar o que pode ser o futuro, livre do fardo que foi o passado ou tem sido o presente.
Considerando as explicações oferecidas nas redes, trata-se de “uma maneira poética de dizer que não devemos deixar que nossos fracassos anteriores nos impeçam de alcançar nossos objetivos”. Ou que “o passado não determina o futuro”. Ou que “você pode ter um futuro que é tudo o que você espera que seja, se você abandonar a feiúra do passado”; “não o esqueça, mas deixe-o de lado e siga em frente”.
Neste sentido, porém, há quem considere mais apropriada para os tempos atuais a máxima do filósofo, poeta e ensaísta espanhol George Santayana, publicada em 1905 no livro “A vida da razão”, escrito em inglês: “Those who cannot remember the past are condemned to repeat it”, ou seja, “Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo.” A frase, com frequência, é erradamente atribuída ao pensador irlandês Edmund Burke, pai do conservadorismo moderno, mas ele apenas plantou em seu livro de 1790, “Reflexões sobre a Revolução na França”, uma semente para essa reflexão, ao escrever que as pessoas não terão expectativa de posteridade, se nunca olharem para seus ancestrais (no original, “People will not look forward to posterity, who never look backward to their ancestors”).
Bordão
Mas quem plantou a semente do bordão de Kamala? Em entrevista realizada por e-mail em outubro de 2020, o site Religion News Service questionou a então senadora sobre a relação da sua fé com a sua carreira como promotora distrital de São Francisco, procuradora-geral da Califórnia e parlamentar.
Ela respondeu:
“O Deus em que sempre acreditei é um Deus amoroso, um Deus que nos pede para servir os outros e falar pelos outros, especialmente aqueles que não são ricos ou poderosos e não podem falar por si próprios. Posso traçar minha crença na importância do serviço público ao aprender a parábola do bom samaritano e outros ensinamentos bíblicos sobre cuidar de nossos vizinhos – e compreender que nossos vizinhos não são apenas aqueles que vivem em nosso CEP, mas incluem o estranho também.
Ao longo da minha carreira, sempre tentei ser uma defensora dos que não têm voz e são vulneráveis, sejam sobreviventes de violência sexual ou proprietários de casas na Califórnia fraudados por grandes bancos. E alguns dos líderes que mais admirei, de Constance Baker Motley a Thurgood Marshall e Ella Baker, compreenderam que muitas vezes é necessária uma fé profunda para ver o que pode ser, livre do fardo do que já foi” – sendo este final a tradução livre do bordão em inglês: “to see what can be, unburdened by what has been”.
Constance Baker Motley
Nomeada pelo então presidente Lyndon Johnson, em 1966, para o Tribunal Distrital dos EUA para o Distrito Sul de Nova York, Constance Baker Motley (1921-2005) se tornou a primeira juíza federal negra do país. Quando cursava Direito na Universidade de Columbia, ela ingressou no Fundo de Educação e Defesa Legal (LDF, na sigla em inglês) da NAACP (sigla em inglês para Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor), e foi secretária do fundador do LDF, Thurgood Marshall (1909-1993), que se tornou o primeiro juiz negro da Suprema Corte. Marshall também trabalhou com Ella Baker (1903-1986), ativista dos direitos civis e humanos das pessoas negras.
Em 2021, ano que marcaria o centenário de Constance, Kamala gravou um vídeo para a celebração realizada pelo LDF, no qual disse que a magistrada “passou a vida desafiando as expectativas”. “Ela nos mostrou o poder da lei para efetuar mudanças. E ela nos ensinou a ver o que pode ser, livre do fardo do que já foi.”
Embora Kamala atribua tal ensinamento a três alegadas fontes de inspiração, especialmente a Constance, não veio à tona até o momento qualquer trecho específico da obra deles com a frase que virou seu bordão político, repetido como um mantra.
Livre do fardo
Diante da desistência do presidente, o jornal britânico The Independent até parodiou sua vice em matéria sobre a potencial substituta: “Kamala Harris, unburdened by what has been, can finally see what can be”, ou seja, “Kamala Harris, livre do fardo do que já foi, pode finalmente enxergar o que pode ser.” Em outras palavras: a campanha tem sido um fiasco com Biden, mas Kamala agora pode ser cabeça de chapa e, se derrotar Trump, virar o que o jornal chama de “uma presidente histórica: simultaneamente a primeira mulher, a primeira mulher negra e a primeira pessoa de ascendência asiática, a ocupar o mais alto cargo no país”.
A repercussão crítica de suas falas, porém, mostra que o caminho nada tem de fácil.
Como comentou um gaiato nas redes:
“Eu costumava falar como ela… na escola primária, quando tinha que prestar um relatório oral sobre uma tarefa de leitura que não fiz.”
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