São as Forças Armadas, estúpido!
Em democracias, o fator determinante para a manutenção do poder costuma ser a economia. As coisas são diferentes em regimes de força
Depois de 26 dias de conflitos nas ruas, com um saldo de 300 mortos, a líder autoritária de Bangladesh, Sheikh Hasina, abandonou o governo e fugiu do país nesta segunda-feira, 5.
Depois de duas semanas de contestação à sua fraude eleitoral, com 17 mortes e mais de 2.000 prisões de opositores, o ditador da Venezuela Nicolás Maduro continua firme no poder.
O que explica o desfecho diferente nos dois casos?
O peso da economia
Em democracias, o fator determinante para a permanência de um político ou partido no poder costuma ser a economia. O americano Jim Carville, estrategista da campanha presidencial do democrata Bill Clinton, em 1992, condensou a ideia na célebre frase “É a economia, estúpido!”.
A economia de Bangladesh vai muito bem, obrigado. Deve crescer 6,1% neste ano e 6,6% em 2025, segundo o Asian Development Bank. O índice de pobreza caiu de 11,8% da população, em 2010, para 5% em 2022, nas estatísticas do Banco Mundial.
Enquanto isso, a economia da Venezuela continua no inferno. Segundo as Nações Unidas, 82% da população vivem na pobreza e 53%, na pobreza extrema. A inflação no mês de julho foi estimada em inacreditáveis 50%, o que muitos viram como “melhora”, uma vez que a taxa agregada dos últimos quatro anos é da ordem de 130.000% (isso mesmo: cento e trinta mil por cento).
Em países onde o voto significa alguma coisa, nenhum governo com essa performance econômica abismal seria premiado com a reeleição. E Maduro não foi, como indicam todos os sinais disponíveis. Só mesmo propagandistas do regime continuam insistindo que pessoas que não têm o que comer votariam contra os seus próprios interesses, e de sua família, em nome de alguma abstração patética como “a revolução bolivariana”.
Compra de lealdade
Sheikh Hasina caiu e Maduro continua de pé porque as coisas funcionam de maneira diferente em regimes de força. Neles, a lealdade dos militares ao governo é o fator determinante. Numa adaptação da frase de Carville, “São as Forças Armadas, estúpido!”.
Hasina chegou ao poder em 2009, depois de dois anos de comando do país por uma junta militar que havia dado um golpe de Estado.
Saudada a princípio como uma democrata, ela foi consolidando sua permanência no governo ao longo dos anos pela compra de lealdade – inclusive de chefes militares, cujas famílias puderam fazer negócios lucrativos com o poder público.
Foi a percepção de que o Estado havia sido loteado entre uma casta de escolhidos que levou os bengalis às ruas nas últimas semanas.
Custo e benefício
Pareceu que o Exército apoiaria a primeira-ministra, dada a repressão às ondas iniciais de manifestação antigoverno.
Mas, em vez de recrudescer a repressão, arcando com as consequências de serem vistos como sanguinários pela comunidade internacional, os militares parecem ter concluído que uma transição controlada por eles era uma alternativa mais vantajosa.
O general Waker-uz-Zaman, chefe das Forças Armadas, já anunciou na televisão a criação de um governo provisório.
Na Venezuela, Maduro entregou bilhões aos chefes militares que o cercam.
Em 2020, depois de obter acesso a documentos oficiais do Exército venezuelano, a rede de jornalismo investigativo anticorrupção OCCRP mostrou que 84, de 312 generais da ativa, atuavam também em empresas públicas ou privadas contratadas pelo governo. Além disso, 35 tinham assento no conselho administrativo de algumas das maiores empresas privadas da Venezuela.
Maduro também deu armas e dinheiro a milicianos, que complementam o seu aparato de segurança.
Esses grupos estão tão profundamente ligados ao regime que não perderiam apenas boquinhas caso a oposição destronasse Maduro. Muitos poderiam parar na cadeia. Não têm nenhum incentivo para facilitar uma mudança na presidência.
Os militares e seus interesses
Embora as duas história tenham suas diferenças, elas deveriam servir de alerta para quem ainda acha que é boa ideia envolver as Forças Armadas na política, como tantos no Brasil atual.
Uma vez tornados sócios de um caudilho que pisoteou as regras do jogo para chegar ao poder ou continuar no topo, os militares farão cálculos como qualquer outros grupo de interesses, levando em conta os seus ganhos e os riscos de uma mudança de regime.
Muitas vezes, mesmo quando a população tem sucesso em derrubar quem os oprimia, verá os militares tutelarem a transição, como acontece agora em Bangladesh. Eles têm armas para impor sua vontade.
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