O “regime desagradável” de Lula e o fascismo na Venezuela
Nos últimos dias, Lula se viu pressionado a fazer uma grande concessão e dizer que a Venezuela é um “regime desagradável”, apesar de que, nas suas palavras, “não é uma ditadura”
Imagine que você é mãe de um adolescente de 14 anos. Seu filho é um menino idealista, que se juntou a outros colegas do ensino médio para protestar contra um governo que prendeu o prefeito da sua cidade e outros líderes da oposição. A cidade está um caos, você está sem notícias. De repente, passa a circular no Twitter fotos do seu filho caído no chão com a massa encefálica exposta. Ele foi atingido na cabeça por um disparo da Guarda Nacional Bolivariana que reprimia os protestos. Como você classificaria um regime no qual isso acontece?
Nove anos se passaram depois do referido acontecimento (o menino chamava-se Kluiver Roa e foi assassinado em 2015, em San Cristóbal, Venezuela) e o regime contra o qual os venezuelanos protestavam permanece o mesmo.
As forças de segurança desse regime, e os coletivos – grupos armados pró-governo – têm sistematicamente atacado manifestações desde 2014, com ações violentas, espancamentos brutais e tiros à queima-roupa. Por isso mesmo, durante alguns anos, os protestos diminuíram. O regime não assassinou apenas Roa, mas matou, prendeu e torturou milhares de cidadãos. Como você classificaria um regime no qual isso acontece?
Crimes contra a humanidade foram cometidos sob esse regime como parte de uma política de Estado para reprimir opositores. Esse regime prendeu opositores políticos e os impediu de concorrer a cargos públicos. No país onde vige esse regime, o Judiciário parou de funcionar como um poder independente do Estado desde 2004.
Nesse regime, as autoridades estigmatizaram, assediaram e reprimiram a imprensa, fechando veículos dissidentes. Lá as autoridades assediam e perseguem defensores dos direitos humanos e organizações da sociedade civil que tratam de direitos humanos e emergências humanitárias.
Esse regime submete o seu povo a uma grave emergência humanitária, com milhões sem acesso a cuidados de saúde e nutrição adequados. Esse regime provocou o êxodo de cerca de 7,1 milhões de venezuelanos, gerando uma das maiores crises migratórias do mundo. Como você definiria esse regime?
Há muitos anos se sabe que a Venezuela não vive sob o regime democrático e há muitos anos o presidente Lula sustenta que a Venezuela é uma democracia. Nos últimos dias, porém, essa “narrativa” voltou-se fortemente contra ele, que se viu pressionado a fazer uma grande concessão e dizer que a Venezuela é um “regime desagradável”, apesar de que, nas suas palavras “não é uma ditadura.”
Ditadura de esquerda
A fala cínica e irresponsável do presidente Lula espanta e causa indignação em pessoas razoáveis, mas ela está em consonância com o julgamento que parte da esquerda brasileira faz, ainda neste momento, sobre o regime da Venezuela.
Há uma franja extrema da esquerda, na qual o PT está incluído, que aceita a falsa vitória eleitoral de Nicolás Maduro, justifica a violência passada e aplaude a violência em curso no país vizinho.
Há também uma outra parte da esquerda, um tanto mais moderada, que consegue ver o que todo mundo vê, reconhece as fraudes e violências perpetradas pela ditadura chavista, mas chega à astuciosa conclusão de que o atual regime da Venezuela não é de esquerda, mas sim de direita.
Louvamos o repúdio dessa esquerda moderada à ditadura da Venezuela, mas o regime da Venezuela não é de direita, é de esquerda mesmo; assim autoproclamado e aclamado pelos seus pares, tais como a China, Coréia do Norte, Cuba, Nicarágua e o Brasil.
O que ocorre e pode confundir é que na Venezuela amadureceram características de um modelo político historicamente identificado como de direita: o fascismo.
Extremismos políticos
Cabe aqui uma breve revisão explicativa: desde a origem na Revolução Francesa, os termos esquerda e direita marcaram profundamente as lutas políticas. Os partidos e regimes que os adotaram entraram, por sua vez, por veredas modificadoras: algumas benéficas, outras de extrema perversidade.
No caso da esquerda, a perversidade, que já havia dado as caras no regime de Terror na própria França, iria materializar-se na Rússia, no início do século XX, com o bolchevismo; atingindo seus extremos nos horrores do stalinismo. No caso da direita, a perversidade marchou pela Itália de Mussolini e chamou-se fascismo; porém, atingindo seus extremos de horrores na Alemanha de Hitler, com o nazismo.
Tais modelos perversos, embora historicamente antagônicos, nunca deixaram de guardar semelhanças importantes; a começar pela característica de que são regimes de hipertrofia do Estado. Além disso, em ambos os casos, toda a sociedade é mantida sob controle; controle este que significa censura, perseguição, prisão, tortura e morte.
Deve ser considerado também outro divisor retórico entre o totalitarismo de esquerda e o totalitarismo de direita: Autoproclamando-se “comunista” pelo início do século XIX, e principalmente pela influência do marxismo, a esquerda protagonizou terríveis violências; todas, porém, realizadas em nome do bem, de um futuro radioso de igualdade e fraternidade, com toda a riqueza da terra sendo possuída em comum (comunismo). Já o totalitarismo de direita, aquilo que se tem chamado de nazifascismo, costuma declarar abertamente as perversidades a que se propõe.
É fato que correntes de esquerda e de direita afastaram-se grandemente de seus antepassados perversos; tendo, aliás, sido esta a tônica no século XX desde o fim da Segunda Grande Guerra (1940-1945).
No século XXI, porém, de um lado e de outro, prosperam exercícios de volta às perversidades. A revolução bolivariana ou o bolivarianismo do século XXI é um desses exercícios protagonizados pela esquerda.
Fascismo real e fascismo imaginário
Na Venezuela, o modelo ditatorial de esquerda, embora acalentando a intenção bolchevista de total usurpação estatal da propriedade e dos sistemas produtivos, avançou por uma linha mais tipicamente fascista que bolchevista. Não tendo chegado ao comunismo – a exemplo de todas as ditaduras de esquerda –, o chavismo adequou o seu insaciável desejo de poder a uma espécie de capitalismo de Estado.
O fascismo é uma ideologia de difícil definição, pois carece de alguns princípios filosóficos que a fundamentem. Alguns autores chegam a considerá-lo não uma ideologia propriamente dita, mas uma síntese de elementos contraditórios de diferentes ideologias em um projeto específico.
Se formos rigorosos em relação à classificação, talvez a Rússia seja hoje o exemplo mais próximo de uma experiência fascista. O filósofo russo Aleksandr Dugin, ideólogo de Putin, admite, inclusive, o fascismo como ideologia legítima para subverter o que considera uma “decadência ocidental liberal”.
Não é à toa que orbitam hoje, em torno da Rússia, regimes autoritários e ditatoriais tanto de esquerda, quanto de direita. Eles têm em comum o mesmo desprezo pela democracia, pela liberdade, pela ordem espontânea, pelo pluralismo.
O esquerdo-fascismo vem se espalhando pelo mundo, especialmente em setores da intelectualidade que enveredaram pelo apoio entusiástico a toda tirania, por mais atrasada, repressora e cruel que seja, desde que seja antiocidental; como é o caso, por exemplo, da teocracia iraniana, que escraviza mulheres e que persegue e assassina homossexuais.
Na sua sanha repressora, o atual ditador venezuelano prometeu, e já começou a cumprir, um “banho de sangue”. Contudo, já bastante acostumado à retórica bolchevista, tem abusado daquele recurso já denunciado por George Orwell nos livros A Revolução dos Bichos e 1984; este recurso esdrúxulo é aquela linguagem de porco que consiste em usar os termos no sentido exatamente contrário aos fatos.
Na Venezuela de hoje, no momento mesmo em que a repressão manda contra os opositores a polícia e as milícias, prendendo e matando, como é típico da política fascista, este mesmo regime repressor chama suas vítimas de “fascistas”; e vai além, encaminha uma nova “Lei contra o Fascismo, o Neofascismo e Expressões Similares”.
A legalização da violência com a justificativa de combater supostas ameaças ao regime e garantir a ordem (ou seja, uma prática fascista) se impõe sob o pretexto de combate a um fascismo imaginário.
Alegando a existência de uma conspiração fascista apoiada por estrangeiros para derrubá-lo, Maduro recrudesceu mais o regime após as eleições cujo resultado fraudou. Ativistas dos direitos humanos afirmam que a velocidade e a escalada da repressão são sem precedentes na história recente da região.
Por esses dias, Maduro deflagrou a “Operación Tun Tun” (“Operação Toc Toc”). O nome faz referência às frequentes visitas de homens fortemente armados e vestidos de preto que, a serviço de Maduro, capturam oponentes em suas casa.
O próprio Serviço de contrainteligência militar do regime (DGMI) publicou na sua conta do Instagram vídeos de algumas dessas capturas.
María Oropeza, por exemplo, uma das organizadoras da campanha de Maria Corina Machado, aparece sendo detida ao som da trilha do filme de terror de 1984 A Hora do Pesadelo: “Um, dois, Freddy está vindo atrás de você! Três, quatro, é melhor trancar a porta!”, alertam as letras sinistras da música.
Um segundo vídeo do DGCIM mostra outra prisão com trilha sonora de uma adaptação para filme de terror de Carol of the Bells, cuja letra modificada alerta: “Se você fez algo errado, então ele virá! … Ele vai te procurar! É melhor você se esconder!”
Como você chama isso? Eu chamo de terrorismo de Estado, praticado por um regime ditatorial que tende ao totalitarismo. Lula chamaria de incidente normal de um “regime desagradável”, onde há “uma briga” porque perderam as atas de votação.
Leia mais: A narrativa de Lula sobre a Venezuela não cola nem para Maduro
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