O ódio de Marilena Chauí ao cristianismo
Que um livro sobre a patrística, assumidamente anticristão, escrito por alguém sem complacência com o cristianismo e que achou por bem não incluir autores cristãos nas suas pesquisas tenha recebido o prêmio Jabuti acadêmico, indica bem em que pé está a nossa Academia.
Descobri recentemente que Marilena Chauí escreveu um livro anticristão sobre a Patrística. Na palestra de apresentação do seu livro A Patrística: Uma Introdução ao nascimento da Filosofia Cristã a autora mesma afirma:“não é um livro cristão. É um livro anticristão.”
Para quem não está ligando o nome à pessoa, Chauí é uma professora de filosofia que já nos brindou com exclamações clássicas, como aquela proferida em 2012, em um momento de deslumbramento arrebatado: “Quando Lula fala, o mundo se ilumina”. Também está gravado aquele outro momento icônico no qual ela grita com uma voz esganiçada pela emoção incontida: “Eu odeio a classe média!”
Pois bem, o fato é que Chauí escreveu o tal livro sobre a Patrística, que foi publicado sob o selo da Companhia das Letras, ganhou prêmios, e o divulgou em uma palestra na qual debochou dos cristãos de modo geral e dos evangélicos em particular, do alto da sua intelectualidade soberba.
Instigada por alguns amigos e colegas cristãos que se sentiram incomodados e/ou ofendidos com sua fala, assisti ao vídeo da referida palestra, que ocorreu no 5º Encontro de Pós-Graduação em Filosofia da USP, no dia 13 de agosto.
Chauí e o uber evangélico
Um trecho específico da palestra gerou mais polêmica e acabou ganhando as redes sociais. Em um tom jocoso, ela afirma que fica “muito agoniada” quando o motorista do Uber lhe diz “fica com Deus”, pois ela sabe que “ele é pentecostalista e fundamentalista” e por isso fica “desesperada com essa ideia de que essa coisa (o cristianismo) se irradiou pela sociedade”.
A reação a essa fala pedante não ficou apenas nas redes sociais. Na folha de S.Paulo, o sociólogo, pastor e professor da Faculdade de Teologia da Igreja Presbiteriana Independente (Fatipi), Valdinei Ferreira, escreveu o artigo “Marilena Chauí e o uber evangélico”, no qual aponta que “a limitação da palestra e do livro da professora não reside na aversão dela pela religião cristã, seja na versão católica ou evangélica, que fica clara quando diz que fica agoniada em pensar que o motorista do Uber é pentecostal. Seu problema está no desprezo às regras de produção do próprio campo científico, a começar da mais básica: atualização bibliográfica”.
O ponto destacado pelo pastor e professor é realmente estarrecedor. Logo no começo da palestra Chauí declara: “Eu tomei distância dos autores cristãos sobre a patrística porque 99% dos historiadores da patrística são cristãos que fazem apologia ao cristianismo.” Ou seja, a pesquisadora opta por uma bibliografia desatualizada por puro preconceito contra autores cristãos.
Ciência e fé
Outro artigo a propósito das falas de Chauí foi publicado na Gazeta do Povo, por Márcio Campos. O autor de “A razão diante do enigma da existência” e coautor de “Bíblia e natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé”, também citou o “uber evangélico” e a absurda decisão metodológica da autora de excluir os autores cristãos de uma pesquisa sobre filosofia cristã.
Ele optou, porém, por circunscrever seu comentário à questão ciência e fé e se deter sobre “duas enormes bobagens” que Chauí falou na palestra sobre a controvérsia heliocêntrica e sobre a teoria do Big Bang.
Segundo Chauí, um físico não pode ser cristão porque, por exemplo, a teoria do big bang contradiz a ideia de que Deus criou o mundo do nada.
O autor do artigo explica, porém, que a teoria predominante que existia na ciência e que os materialistas e ateus defendiam era a de que o universo sempre existiu, até que um astrofísico belga, Georges Lemaître, que também era padre, concebeu a teoria do “átomo primordial”, depois apelidada de teoria do big bang por aqueles que a deturparam, interpretando-a como se ela significasse uma refutação da existência de Deus. Mas “Lemaître, ao contrário de Chauí, sabia o que tinha descoberto: não uma teoria sobre a criação de tudo o que existe, mas uma teoria sobre o início temporal do universo, o que é diferente”, escreveu Marcio Campos.
O artigo também comenta a seguinte fala de Chauí: “E aí, como é que foi mesmo que se deu a passagem do geocentrismo ao heliocentrismo? Quanta gente foi pra fogueira? O que aconteceu com Galileu quando virou a luneta pro céu? Então, não vem que não tem.”
Segundo Marcio Campos “ninguém, absolutamente ninguém foi condenado à morte por defender o heliocentrismo”. Houve sim perseguições na inquisição, mas o problema, segundo o autor do artigo, “sempre residia em opiniões teológicas, não científicas”.
Fica com Deus, Chauí!
Aqui em O Antagonista, um colega também escreveu sobre a palestra de Marilena Chauí. Ricardo Kertzman trouxe a questão para o âmbito da observação do comportamento cotidiano. Na forma de uma boa crônica, Kertzman se pergunta entre entristecido e indignado como alguém consegue enxergar algo ruim em um motorista de Uber, que, ao se despedir, lhe diz: “Fica com Deus”
“Em todo o Brasil, fala-se: ´Vai com Deus´, ´Fica com Deus´, ´Deus te acompanhe´”. E é tão bom, tão aconchegante – independentemente de religião, caramba! – ouvir isso, pois expressa o sincero bom sentimento de quem fala (na maioria das vezes, gente que nem conhecemos), que é impossível não responder, “Amém”, escreve Kertzman.
É importante abordar a questão também por esse lado. Dar a benção é um comportamento tão natural que causa estranheza o fato de alguém se sentir “agoniada” por recebê-la.
Do comportamento do motorista do uber podemos inferir o que Chauí disse, que “ele é pentecostalista”, ou podemos inferir simplesmente que ele é um homem comum, maduro, equilibrado e cordial, que acata os costumes e os símbolos linguísticos de seus antepassados.
Mais interessante aqui, do ponto de vista da análise do comportamento, é questionar o motivo da indignação contra um gesto tão brando. Por que uma expressão tão suave causa em Chauí, afetos (para usar uma expressão espinosana que lhe deve ser cara) tão negativos como a agonia e o desespero?
Do cristianismo herdamos alguns símbolos, é verdade. Mas herdamos também hábitos comuns que nos congregam como irmãos que se sentem, apesar de desconhecidos, próximos pela cultura, pela religiosidade, pela devoção e pela fé. O hábito de dizer “Deus te abençoe” ou “fica com Deus” tem uma força sobre o psiquismo porque nos congrega imediatamente pela fé que nos irmana e por isso nos conforta.
O indivíduo que, em vez de se sentir acolhido por esse testemunho de gentileza, sente-se exasperado, sugere com isso que seu psiquismo está fraturado, indica que se apartou da comunidade que se sustenta como uma família universal. O simples fato de se ofender mostra seu estado de desarmonia interior, de desajuste social e de ressentimento contra uma coletividade com a qual precisa conviver.
Esse indivíduo, na aparência ou na superfície, se julga superior. No âmbito do discurso, sobressai-se; no quesito intelectual, reina; no âmbito acadêmico, destaca-se; no entanto, interiormente, debate-se contra essa “coisa” chamada cristianismo, que “se irradiou pela sociedade” e conquistou o mundo.
Crer para entender
A patrística é um momento de síntese grandiosa do pensamento cristão. O que antes estava disperso entre os primeiros apologistas, encontra com santo Agostinho uma culminância especulativa que sintetiza o conhecimento grego, absorvendo o melhor do platonismo e do neoplatonismo sob o crivo da verdade revelada cristã.
Há tanta coisa bela na obra de Agostinho que fica difícil selecionar um aspecto para comentar. Mas gosto particularmente da sua fórmula “Credo ut intelligan, intelligo ut credan” (creio para compreender e compreendo para crer).
Chauí conhece essa fórmula e sabe o impacto que isso teve para o cristianismo. Mas ela não crê, logo não compreende. Mesmo assim, ela explica, ensina, debocha e ganha prêmios escrevendo para jovens de graduação sobre aquilo ela não é capaz de compreender. Eis o que se tornou a filosofia acadêmica.
Ela sabe que a verdade cristã está fora do alcance da sua razão divorciada da fé e é por isso que ela faz, de antemão, um recorte metodológico. Seu livro, diz ela, é “heterodoxo, porque escrito por uma espinosana e que, portanto, não tem complacência nenhuma com o mundo cristão. Nenhuma complacência.”
Que um livro sobre a patrística, assumidamente anticristão, escrito por alguém sem complacência com o cristianismo e que achou por bem não incluir autores cristãos nas suas pesquisas tenha recebido o prêmio Jabuti acadêmico, indica bem em que pé está a nossa academia.
Essa “coisa”, o cristianismo
O estudo empreendido por Marilena Chauí não é condenável. Naquilo a que se propõe, deve ter algum valor. Ela quer seguir as pegadas de Espinosa e mostrar as relações existentes entre a religião e a política. Essa relação existe. Ela pode ser perniciosa e perigosa. Mas a religião não é só isso, ela não tem só esse lado. Para usar a expressão de um filósofo de minha predileção, Henri Bergson, a religião e a moral têm “duas fontes”.
Chauí, porém, acha que a religião joga apenas ao lado do poder e da superstição. O cristianismo é, para ela, simplesmente “uma forma de institucionalidade sociopolítica que decide os rumos da ação e do saber. E por isso é preciso discutir de onde essa coisa veio.”
O termo “coisa”, que se repete inúmeras vezes ao longo da sua fala quando ela se refere ao cristianismo, expressa bem o asco que ela tem pelo seu objeto de análise.
Percebe-se, porém, que ela não tem tanto nojo de outras religiões. Ao explicar, por exemplo, que o cristianismo se institucionalizou uniformizando o pensamento no combate às heresias, ela cita en passant, a religião islâmica, de uma maneira um tanto desconexa: “o islamismo agora virou isso. Porque o cristianismo estava lá para atrapalhar. Para criar hábitos que ele não tinha.” O raciocínio da “filósofa” aqui é truncado, mas do pouco que foi dito se depreende que, para ela, o cristianismo criou algo ruim no islamismo…
“Eu vou ser sábia”
O livro “A Patrística: Uma Introdução ao Nascimento da Filosofia Cristã” retoma, segundo sinopse que se lê na Amazon, “um projeto de ampla envergadura, iniciado há quase três décadas: refazer o percurso do pensamento ocidental, dos pré-socráticos aos autores modernos”.
No começo da palestra, Chauí diz justamente isso, mas avisa também que resolveu cortar etapas, saltar alguns séculos: “não farei um volume sobre Idade Média. Me recuso”. A idade média é mais do que ela “poderia suportar”.
Ela diz que vai então pular para a renascença porque resolveu ser sábia: “Vou saltar daqui pro Renascimento. Agora eu me dedico de coração ao renascimento porque decidi ser uma sábia”, diz Chauí, e continua: “Eu decidi que não vou ser mais uma intelectual. Eu vou ser uma sábia e a única forma de ser uma sábia é ir para os autores do Renascimento”, concluiu.
Eu tenho uma novidade para Marilena Chauí. Algo que descobri lendo um erudito alemão chamado Werner Jaeger, autor do monumental livro “Paideia, a formação do homem grego”, que Chauí certamente conhece.
Mas talvez ela não conheça as suas conferências Early Christianity and Greek Paideia, ministradas na Universidade de Harvard, em 1960. Nelas Werner Jaeger expôs o surgimento do humanismo cristão e suas relações com o humanismo grego.
Na conclusão dessas preleções, Jaeger chama a atenção para algo que não havia ainda sido estudado de modo a fazer jus à importância do fenômeno: trata-se da influência das obras dos primeiros padres gregos no pensamento renascentista, italiano e europeu.
O que o erudito alemão afirma em seus estudos sobre o cristianismo primitivo é que, em última análise, o humanismo cristão de Erasmo de Roterdã, o “príncipe dos humanistas”, o “pai da civilização moderna” remete aos padres gregos e que “desde o renascimento há uma linha que nos leva diretamente ao humanismo cristão dos padres do século IV e a sua ideia da dignidade do homem e de sua reforma e renascimento pelo espírito.”
Ou seja, segundo a linha de pesquisa traçada por Jaeager, os renascentistas, considerados os sábios por excelência por Marilena Chauí, beberam da fonte eterna da sabedoria cristã, renegada por ela.
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