Na posse, Silvio Almeida prometeu combater assédio: “Vocês são valiosas para nós”
Crise na esquerda identitária ilustra sua hipocrisia?
Em seu discurso de posse, proferido em 3 de janeiro de 2023, o ministro dos Direitos Humanos do governo Lula, Silvio Almeida, agora acusado de ter assediado sexualmente mulheres, incluindo Anielle Franco, prometeu combater “todo tipo de assédio” e procurar a própria a ministra da Igualdade Racial para executar “políticas neste sentido”, somando-se “a um esforço que deve ser de todo o governo federal e, ao mesmo tempo, de toda a sociedade brasileira”.
“Mulheres do Brasil, vocês existem e são valiosas para nós”, disse Almeida ao ser empossado no cargo.
Em 12 de agosto de 2024, o Papo Antagonista mostrou em vídeo que outro aliado de Lula e também esquerdista Alberto Fernández, ex-presidente da Argentina acusado pela ex-primeira-dama Fabiola Yañez de violência de gênero, havia feito igualmente um discurso, em 8 de fevereiro de 2022, contra a prática agora atribuída a ele.
“Me tranquiliza saber que uma mulher que padece de violência de gênero possa contar com o Estado para socorrê-la. E fico feliz que o Estado o faça. E tenham certeza que vamos socorrer essas 128 mil mulheres e as que sofram violência de gênero. Mas quero que todos ouçam: me dá vergonha que, na Argentina, uma mulher sofra violência de gênero!”, disse o então presidente do país vizinho.
Atualmente, Fernández responde a processo por nove atos desse tipo. O ex-presidente foi indiciado por lesões leves e graves, agravadas por vínculo, abuso de poder e de autoridade, juntamente com ameaças coativas.
Assim como ele disse que nunca bateu em uma mulher, Silvio Almeida repudiou com “absoluta veemência” e “com a força do amor” as acusações de assédio, além de ter apelado à cartada do racismo, alegando haver “uma campanha muito bem orquestrada para afetar minha imagem enquanto homem negro”, embora Anielle, uma de suas supostas vítimas, também seja negra. Ele já se voltou contra ela e outro ministro, Alexandre Padilha, das Relações Institucionais, reunindo prints para emplacar a tese de fogo amigo.
De quebra, o ministério chefiado por Almeida emitiu nota sugerindo que acusações “infundadas e sem materialidade” sobre “temáticas de assédio”, trazidas à tona pela ONG Me Too Brasil, configuram o “modus operandi” de retaliação da organização, neste caso por não ver atendidos seus “interesses escusos em torno dos recursos da administração pública”, no âmbito da licitação do “Disque-100”, feita pela pasta de Direitos Humanos. Na prática, um esquerdista identitário acusado de assediar sexualmente outra esquerdista identitária acusa uma organização de defesa das mulheres de oportunismo, ganância e tentativa de intimidação. A direita já separou a pipoca.
Apesar de todas as alegações, paira pelo menos sobre Almeida e Fernández, neste momento, a pecha de hipócritas, turbinando, por consequência, o descrédito de toda essa esquerda identitária contemporânea, que afeta virtude em defesa das minorias, mas não consegue viver de acordo com aquilo que prega.
A tentativa de Almeida de se escudar em sua negritude reforça ainda o perigo do discurso ideológico que sobrepõe a identidade grupal ao caráter individual, oferecendo um salvo-conduto a indivíduos potencialmente abusadores, que não representam nem podem jamais ser confundidos com categorias inteiras em razão da cor da pele ou de qualquer outro elemento identificador de grupos humanos, até porque suas eventuais vítimas podem pertencer, inclusive, a esses mesmos grupos.
Em outras palavras: Almeida diz representar, mas não pode ser confundido com todos os negros, ainda mais se forem confirmados os casos de assédio, inclusive contra uma mulher negra. Nem pode, claro, ser confundido com todos os homens, ainda que o discurso ideológico, nesses casos, migre da vitimização grupal pela cor da pele para a culpabilização coletiva do gênero masculino, soterrando, novamente, a noção de individualidade.
Como O Antagonista revelou, servidores foram coagidos a sair em defesa de Almeida, cuja situação vem parecendo insustentável, já que a primeira-blogueira Janja postou foto de beijo na testa de Anielle, e Lula disse que quem pratica assédio não pode ficar no governo – ainda que o petista tenha um histórico de complacência com acusados não condenados em última instância.
Leia abaixo trechos do discurso de posse do ministro dos Direitos Humanos, considerando que a hipocrisia existe e, esta sim, é valiosa para a esquerda lulista, hoje engasgada com seus próprios venenos.
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Silvio Almeida:
“Como ministro de Estado, ouso dizer que o Brasil ainda não enfrentou a contento os horrores da escravidão, como outros traumas que se avolumam sobre nós, o que permite que a obra da escravidão se perpetue no racismo, na fome, no subemprego e na violência contra os homens e as mulheres pretas e pobres deste país. Assim como muitos, desejo seguir em frente. Eu quero seguir em frente. Mas jamais aceitaremos o preço do silenciamento e da injustiça. A verdadeira paz será aquela que construiremos com a verdade, com o cultivo da memória e a realização da justiça.
(…) Quero, no entanto, estabelecer aqui um primeiro compromisso. O compromisso deste Ministério com a luta de todos os grupos vítimas de injustiças e opressões, que, não obstante, resistiram e resistirão a todas as tentativas de calar suas vozes. Por isso, permitam-me, como primeiro ato como Ministro, dizer o óbvio, o óbvio que, no entanto, foi negado nos últimos quatro anos:
Trabalhadoras e trabalhadores do Brasil, vocês existem e são valiosos para nós. Mulheres do Brasil, vocês existem e são valiosas para nós. Homens e mulheres pretos e pretas do Brasil, vocês existem e são valiosos para nós.
(…) Com esse compromisso, quero ser Ministro de um país que ponha a vida e a dignidade humana em primeiro lugar.
(…) Como acadêmico, eu sempre costumo dizer que o Brasil possui três problemas estruturais: a violência autoritária, o racismo e a dependência econômica. Como Ministro, portanto, meu maior compromisso não poderia ser outro que lutar para que o Estado brasileiro deixe de violentar seus cidadãos.
(…) Como dizia antes, nosso maior compromisso será lutar contra a violência, sobretudo a violência estatal.
(…) Precisamos impregnar a administração pública com a defesa dos direitos de todas e todos e promover os direitos humanos como instrumentos da criação de um novo Brasil.
(…) Trabalharemos pela valorização dos servidores, pelo combate a todo tipo de assédio e para que vocês sejam reconhecidos.
Mesmo que meu Ministério não possua hoje estrutura para executar diretamente políticas neste sentido, procurarei imediatamente o Ministro Flávio Dino, a Ministra Anielle Franco, Cida Gonçalves e outros companheiros e companheiras Ministros para me somar a um esforço que deve ser de todo o Governo Federal e, ao mesmo tempo, de toda a sociedade brasileira.”
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