Interpretar a Constituição não basta
Decisão do STF sobre "poder moderador" das Forças Armadas não afasta o risco que o artigo 142 representa para a democracia brasileira
O Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria nesta segunda-feira, 1º, contra a tese de que as Forças Armadas podem desempenhar um “poder moderador” no Brasil, amparadas no artigo 142 da Constituição. A pergunta é se isso basta para afastar definitivamente o perigo que esse artigo representa para a democracia brasileira. E a resposta é um retumbante “não”.
Diga o que disser o STF, uma multidão de militares e eleitores continuará acreditando que a interpretação da corte é ilegítima e que a leitura que eles fazem do “um quatro dois” é a única verdadeira: há espaço para que as Forças Armadas intervenham na política e na ordem institucional “dentro das quatro linhas”.
Apresento três razões para que seja assim.
Teóricos do golpe
A primeira é que nos últimos anos alguns juristas se prestaram ao serviço sujo de endossar a teoria do “poder moderador”. Refiro-me em particular a Ives Gandra Martins Filho, que discorreu sobre o assunto em vídeos na internet e aparece citado em mensagens do celular de Mauro Cid como um dos provedores de argumentos para a plastificação jurídica do golpe que Bolsonaro sonhou em dar.
Já escrevi que Ives Gandra é o nosso Carl Schmitt inzoneiro. Esse último, um jurista que nutria considerável desprezo pelas sociedades liberais, acabou sendo um dos intelectuais de estimação do regime nazista.
A segunda razão é que muitos militares não apenas acreditam na ideia de que as Forças Armadas têm uma “missão de segurança interna em defesa da democracia”, como também se enxergam como última trincheira contra aqueles que pretendem impedi-las de exercer essa função.
Orvil
A frase entre aspas no parágrafo anterior foi tirada o Orvil, livro que fez a cabeça de Bolsonaro e de muitos militares como ele. O texto foi redigido na segunda metade dos anos 1980 por encomenda do general Leônidas Pires Gonçalves, que chegou a ser cotado para a sucessão de João Batista Figueiredo, não tivesse sido esse o último presidente da ditadura militar.
Gonçalves acompanhou de perto a redação do artigo 142 na constituinte de 1988, bafejando no cangote do seu relator, o então deputado Fernando Henrique Cardoso. Transmitiu a muitos militares e a todos que bebem na fonte do Orvil a certeza de que a Constituição atribui, sim, um poder moderador às Forças Armadas, quando diz que elas devem atuar na “garantia dos poderes constitucionais”.
A noção de que uma Constituição como a de 1988, redigida para pôr fim a um regime autoritário, poderia prever um roteiro para a dissolução da democracia é ridícula. A interpretação do artigo 142 que o STF está pronto a firmar sem dúvida nenhuma é a única possível.
O problema é o desgaste da legitimidade da corte – a terceira razão por que o julgamento não basta para pôr a democracia brasileira a salvo desse tipo insidioso de ameaça.
O papel do Congresso
Quando o STF diz que os militares não têm poder moderador, cristaliza-se ainda mais a certeza contrária no coração e no cérebro dos potenciais golpistas. Interferir no Supremo é um dos principais motores das fantasias de ruptura e subversão da ordem do bolsonarismo.
Assim, não basta interpretar a Constituição: é preciso mudá-la.
Para essa tarefa deveriam se apresentar os presidentes da Câmara e do Senado, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco.
É verdade que eles nunca deram nenhuma esperança a Bolsonaro de que o apoiariam numa aventura autoritária. Mas o momento exige mais. Está errado quem acha que as tentações antidemocráticas sumiram do horizonte. O bolsonarismo não está morto. E nenhuma contribuição política e institucional seria mais relevante do que extirpar da Constituição essas poucas palavras onde o golpismo se agarra. Mas Cínico e Sonso não parecem ter coragem para isso.
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