Congresso trapaceia no uso do princípio da separação de poderes
Parlamentares recorrem à ideia para dificultar o controle dos gastos partidários e até mesmo para bloquear investigações policiais
As ideias de harmonia e separação de poderes estão sendo usadas pelo Congresso para tentar conferir aos políticos privilégios indefensáveis.
Há dois projetos com essa característica em trâmite atualmente, um sobre legislação eleitoral e outro para dificultar ações policiais contra deputados e senadores. Se ninguém prestar atenção, eles serão aprovados numa madrugada qualquer, como acontece de tempos em tempos com textos que não sobreviveriam à luz do sol.
A nova lei eleitoral passou pela Câmara e está pronta para ser votada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado desde o último dia 20, quando o senador Marcelo Castro (MDB-PI, foto) apresentou seu relatório sobre o tema.
Facilidade para quem gasta
Do jeito que está, o projeto desmonta completamente o sistema de controle das contas partidárias instituído, há muito custo, na última década. A primeira modificação diz respeito à natureza da prestação de contas, que de “jurisdicional”, como dizem as resoluções do TSE, passa a ser “administrativa”.
Parece bobagem, mas isso torna muito mais flexível para os partidos o processo de apresentação de documentos e justificativas sobre os dispêndios realizados – lembrando que estamos falando, na essência, de alguns bilhões de reais em verbas públicas.
Ao mesmo tempo, os prazos para análise das contas tornam-se mais restritivos para os técnicos da justiça eleitoral.
Facilidade para quem gasta o dinheiro, dificuldade para quem fiscaliza.
Alergia à transparência
Há um outro atentado contra a transparência no projeto. Atualmente, os partidos precisam usar dois sistemas para prestar contas, um da Receita Federal, outro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Entre Câmara e Senado, sumiram as menções a ambos.
O uso do Sistema de Prestação de Contas Anual (SPCA) foi regulamentado em 2019 pelo TSE, para garantir que houvesse padronização nos dados, facilitando a sua consulta pelos técnicos e por qualquer cidadão interessado. O texto que saiu da Câmara em 2021 não faz menção ao SPCA. Sem que exista um padrão para os partidos apresentarem sua papelada, o processo arrisca se tornar caótico.
A contribuição do senador Marcelo Castro foi arrancar do projeto também a obrigatoriedade de uso do Sistema Público de Escrituração Digital (SPED), mantido pela Receita Federal. A disponibilização das informações do SPED à justiça eleitoral aconteceu em 2017 e foi saudada como um grande avanço no controle dos recursos públicos. Mas políticos têm mesmo alergia feroz à transparência.
E adivinhem qual a justificativa apresentada pelo senador para impedir que o sistema da Receita Federal seja usado? Lá vai: “a medida pode ensejar impugnação por mitigação ao princípio da separação de poderes e da prerrogativa da auto-organização do TSE na administração das eleições”. O discurso da separação dos poderes é utilizado em suposta defesa do TSE, mas para favorecer os partidos políticos. E vejam que curioso: foi o próprio TSE quem firmou parceria com a Receita. A corte não está preocupada com esse tipo de “perda de autonomia”.
Tenho de ampliar a frase que escrevi acima. A reforma eleitoral cria facilidade para quem gasta o dinheiro, dificuldade para quem fiscaliza e intransparência para o restante da sociedade. Os políticos querem usar o fundo partidário (mais ou menos 1 bilhão de reais por ano) e o fundo eleitoral (4,9 bilhões de reais em 2024) sem serem importunados.
Blindagem
Para dificultar as ações policiais contra parlamentares, existe na Câmara um projeto de emenda constitucional que ainda não reuniu o número de assinaturas necessário para ser apresentado. Ele nasceu da indignação de alguns deputados – entre eles Arthur Lira, presidente da Casa – com as diligências de busca e apreensão realizadas pela Polícia Federal nos gabinetes dos bolsonaristas Carlos Jordy (PL-RJ) e Alexandre Ramagem (PL-RJ), no começo deste ano. A proposta condiciona qualquer ação desse tipo a uma autorização prévia das mesas diretoras da Câmara ou do Senado.
Em nome da separação de poderes e das “garantias dos parlamentares” cria-se na verdade uma blindagem corporativa. Não importa quais sejam os indícios de crime de qua polícia dispõe – e estou falando em termos genéricos, não sobre os casos específicos de Jordy e Ramagem – parlamentares só poderão ser alvo de diligências se seus colegas deixarem. A restrição se aplicaria até mesmo à investigação de crimes comuns, como o assassinato realizado pela ex-deputada federal Flordelis dos Santos.
No caso da perda de mandato parlamentar, a constituição assegura ao Congresso o direito de ratificar ou não uma sentença expedida pelo Judiciário. Mas isso só acontece depois do final do processo. No caso da PEC que está sendo tramada, os parlamentares querem ter o direito de bloquear uma investigação já nos seus primeiros passos. É demais.
Os políticos brasileiros usam o princípio da separação de poderes de maneira ardilosa, para se porem a salvo da Justiça e gastarem o dinheiro público como bem lhes convier. Não pode ser assim.
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