Com Lula e o STF, quem come a picanha são os corruptos – Parte 2
Como a Segunda Turma do Supremo vai criando circunstâncias jurídicas excepcionais, que devem favorecer empresas flagradas em corrupção
Na quarta-feira, 28, argumentei que a renegociação dos acordos de leniência firmados pelas operações Lava Jato e Greenfield, envolvendo as campeãs nacionais da corrupção, traz o risco de que os prejuízos causados pelos seus cartéis e conluios políticos sejam definitivamente socializados. Fiquei de explicar as razões do meu pessimismo – e do meu inconformismo – num segundo texto. Vamos lá.
Quem capitaneia o processo de revisão no STF – os ministros Dias Toffoli, Gilmar Mendes e André Mendonça – alega que a medida é necessária para sanar supostos abusos, especialmente a suposta coação de executivos (todo mundo sabe que gente amparada por exércitos de advogados caros é terrivelmente vulnerável, certo?). Um outro objetivo seria aperfeiçoar o manejo institucional da leniência, uma espécie de delação premiada para pessoas jurídicas (ou seja, um mecanismo que envolve a confissão de crimes).
Caminho processual
Os ministros vêm percorrendo um caminho processual altamente heterodoxo.
O primeiro passo foi a suspensão do acordo da J&F, dos notórios irmãos Joesley e Wesley Batista, em dezembro do ano passado. Dias Toffoli fez esse favor à empresa, que não quer pagar 10,4 bilhões de reais em multas e indenizações, e depois estendeu a benesse à Odebrecht (a empreiteira OAS entrou na fila logo em seguida).
O segundo passo foi a decisão de André Mendonça de convocar as empresas que fizeram leniências na esteira da Lava Jato para uma reunião com atores institucionais: CGU, AGU, TCU, PGR. O cafezinho foi servido na última segunda, 26, e todo mundo concordou em buscar uma “conciliação” no prazo de 60 dias.
Para falar como os advogados, Mendonça fez isso “no bojo” de uma ação apresentada por Psol, PCdoB e Solidariedade, partidos de esquerda que ficaram indignados ao ver empresas corruptas sendo obrigadas a pagar ressarcimentos e decidiram interferir nesse absurdo.
Parece que não foi para proteger bilionários devassos que o socialismo foi inventado, mas vamos em frente.
Inicialmente, os partidos de esquerda queriam que sua petição fosse analisada por Gilmar Mendes, vejam que curioso. A manobra processual falhou e a causa foi distribuída a Mendonça.
No fim das contas, parece que esse desdobramento não foi ruim. Na última quarta, 27, quatro ministros da Segunda Turma do STF – Gilmar, Toffoli, Kassio Nunes e o próprio Mendonça – concordaram que os 60 dias de “tentativa de conciliação” são uma ideia bacana.. Edson Fachin ficou vencido.
Tudo muito estranho
Por que dizer que tudo isso é heterodoxo?
Primeiro motivo: Dias Toffoli mandou interromper os pagamentos de multas da J&F para verificar, com base nas mensagens hackeadas pela Vaza Jato, se a empresa foi alvo de jogo sujo e pressões indevidas por parte do MPF. Ainda que com muito atraso, o Procurador-Geral da República Paulo Gonet recorreu dessa decisão, lembrando que o caso da J&F não têm nada a ver nem com a Lava Jato, nem com a Vaza Jato (cujo material foi reunido pela chamada Operação Spoofing).
“Não é dado à empresa invocar o contexto das ilegalidades verificadas pelo STF na Operação Lava Jato para se isentar das suas obrigações financeiras decorrentes de acordo de leniência celebrado em juízo diverso, no âmbito da Operação Greenfield, que não tem relação com a Operação Spoofing nem com a Operação Lava Jato”, afirmou Gonet.
Ele queria que a decisão de Toffoli fosse apreciada pelo plenário do STF, mas a patota do ministro na Segunda Turma impediu que isso acontecesse, abraçando a saída conciliatória proposta por André Mendonça.
Segundo motivo
Segundo motivo: A ação proposta pelos partidos de esquerda amigos da corrupção é uma patuscada jurídica que afirma que a Lava Jato criou no país um “estado de coisas inconstitucional” – uma situação de anomia, em que todos as instituições da República falham simultaneamente em garantir direitos fundamentais.
Não bastasse isso, a ferramenta utilizada pelas legendas e seus causídicos foi uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), um tipo de ação que pretende fixar o conteúdo e o alcance de uma norma constitucional e não se presta à discussão de provas e fatos controvertidos.
Em vez de lançar esse cambalacho diretamente na lata de lixo, Mendonça, vejam só, valeu-se dele para propor orgulhosamente sua trégua de 60 dias – no linguajar empolado usado por ele, a busca de uma solução consensual “ao conflito estabelecido (…), a partir da interação dialógica entre os diversos atores e instâncias institucionais envolvidas”.
Esse uso do STF como “câmara de conciliação” não é absolutamente inédito, mas está longe de ser usual, ainda mais resultando de uma ação tão mal-ajambrada de controle de constitucionalidade.
Terceiro motivo
Terceiro motivo: Dias Toffoli deixou claras suas suspeitas de que a J&F foi submetida a um processo viciado na negociação da leniência. Além disso, nesta semana, Gilmar Mendes divulgou a sua crença de que o Ministério Público não tem legitimidade para conduzir esse tipo de acordo. Não fez isso nos termos serenos de quem discute uma tese jurídica, mas no tom escandalizado de quem denuncia uma instituição depravada, que há muitos anos, de forma bandida, viria usurpando uma competência que as leis não lhe dão.
Se os dois ministros estão tão convictos dessas irregularidades, que de tão graves deveriam provocar nulidades em série, por que decidiram transigir com a solução amigável desenhada por Mendonça?
Eles decidiram transigir porque estão fazendo contas de chegada.
Porque não querem ser responsáveis pelas consequências das anulações: processos administrativos e penais teriam de recomeçar do zero, lançando as empresas em um quadro de incertezas; empresários como os irmãos Batista perderiam os benefícios que negociaram no passado e poderiam ser levados à cadeia; depois de alguns anos de briga jurídica, e dado o descarte maciço de provas já empreendido pelo STF, muitas condenações seriam impossíveis, inviabilizando o ressarcimento da corrupção.
Esse seria um quadro dantesco, do qual o tribunal não poderia se dissociar.
Os corruptos vão comer a picanha
Assim, por vias muito tortuosas, foi sendo construída esta circunstância jurídica incomum, em que empresas terão a oportunidade de reduzir o montante que devem às vítimas da corrupção – todos nós – sem que as maiores delas precisem de fato desses descontões camaradas.
Como diz o título deste artigo, os corruptos vão comer a picanha (premium).
Lembremos que J&F e Odebrecht jamais pediram a revisão de seus acordos de leniência alegando que isso seria necessário para garantir a sua sobrevivência financeira. Querem o desconto porque querem, e ponto final.
Ao mesmo tempo, os marreteiros da Demolições STF Ltda. – os ministros da Segunda Turma do STF, excetuado Fachin – poderão seguir no seu propósito de aniquilação da Lava Jato, sem arcar com as consequências radicais que suas teses sobre nulidades e ilegitimidades trariam, se levadas aos seus desdobramentos jurídicos naturais.
Sem melhoria institucional
Os acordos de leniência são exemplo de algo maior: a construção de uma cultura jurídica brasileira de combate à corrupção, em sintonia com o que há de mais desenvolvido no mundão lá fora.
As leis que regem os acordos e a prática de realizá-los são recentes, não têm mais de quinze anos. Num processo como esse, é natural que haja espaço para controvérsias (o MP têm ou não competência para conduzi-los?) e aperfeiçoamento institucional. O mesmo vale para delações premiadas, colaboração internacional em casos de lavagem de dinheiro e tantas outras questões que ocuparam o debate público nos últimos anos.
Mas a Demolições STF Ltda. não está interessada em melhorar as instituições. Decidiu que é preciso demonizar a Lava Jato como se antes mesmo de nascer ela já representasse o Mal (com maiúscula). Com isso, os ministros do STF vão também salgando a terra onde combate à corrupção tentou deitar raízes no Brasil.
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