Caso Gayer: 8/1 foi ponto de partida, não acusação
PF apresentou quatro hipóteses criminais dissociadas da invasão dos três Poderes, mas trechos truncados dos relatórios da polícia, da PGR e de Moraes geraram confusão na imprensa e nas redes
Diante de manchetes como “PF aponta que Gustavo Gayer financiou atos de 8 de janeiro com dinheiro público”, e da reação do deputado federal bolsonarista, do PL de Goiás, dizendo que “nem era deputado” na data da invasão dos prédios dos Três Poderes, já que a posse dos parlamentares eleitos em 2022 ocorreu somente em 1 de fevereiro de 2023, eu, Felipe, fui verificar onde estavam os erros.
No relatório da Polícia Federal? No parecer da Procuradoria-Geral da República? Na decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, de autorizar buscas? Ou na interpretação da imprensa e de ativistas nas redes sociais?
Vamos ligar os pontos?
Este é o trecho do relatório da PF sobre como começou a investigação:
Ou seja: João Paulo de Sousa Cavalcante foi preso preventivamente, este sim, acusado de ter financiado o 8/1 e participado dele. Policiais então encontraram no celular do empresário indícios de condutas ilícitas de Gustavo Gayer, envolvendo desvio de recursos públicos. Aventaram, pois, a hipótese investigativa de que essas condutas de Gayer teriam contribuído para direcionar recursos públicos em favor dos atos antidemocráticos.
Em seguida, porém, a própria Polícia Federal enfatiza no relatório que qualquer hipótese aventada inicialmente “não é fixa, podendo ser reduzida, ampliada, refutada ou confirmada ao longo da investigação”.
“Contudo, serve como objetivo inicial dos trabalhos investigativos”, explica a PF.
O relatório da Polícia Federal, em seguida, apresenta 4 hipóteses criminais dissociadas do 8/1 e detalha cada uma.
São elas:
“2.1 Peculato desvio (art. 312 §1° do CP) para a contratação do assessor João Paulo de Sousa Cavalcante”;
“2.2 Do uso de verba pública para remuneração de empresa particular (art. 312, $1° CP)”;
“2.3 Da aquisição de OSCIP mediante falsificação documento particular (art. 298, CP)”;
“2.4 Da Associação Criminosa (art. 288, CP)”.
Nas descrições das hipóteses criminais, a PF aponta, basicamente, um esquema no gabinete de Gustavo Gayer como deputado federal para financiar empresas privadas, como a ‘Loja Desfazueli’ e a escola de inglês ‘Gustavo Gayer Language Institute’, com verbas parlamentares.
Aponta também que, diante de um impedimento legal para contratar João Paulo de Sousa Cavalcante como assessor no gabinete, Gayer manobrou para contratá-lo por meio de outra empresa, ‘Goiás Online’, que passou a prestar a assessoria de modo irregular.
A PF aponta ainda supostos atos de falsificação de documento particular na tentativa de usar uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) para o recebimento de verbas públicas por emendas parlamentares.
O parecer da PGR faz um resumo correspondente, explicando como a investigação partiu das mensagens encontradas no celular do empresário preso pelo 8/1, identificou “possíveis desvios de recursos públicos”, passou pela hipótese de que esses desvios “teriam, em tese, contribuído” com os “atos antidemocráticos”, mas chegou na “consolidação de quatro hipóteses criminais” (somente) do esquema no gabinete.
A PGR – é preciso ter em mente – se baseia no relatório da Polícia Federal. Já Moraes se baseia no parecer da PGR, que se baseou no relatório da PF. E a imprensa se baseia, geralmente, na decisão do ministro do STF. O risco de ‘telefone sem fio’ é grande, principalmente quando cada um resolve escrever com as próprias palavras o que entendeu do documento anterior.
Moraes, por exemplo, turbina o que havia sido descrito pela PF e pela PGR em relação à suspeita inicial.
“Após a análise do celular apreendido em poder de JOÃO PAULO DE SOUVA CAVALCANTE, a Polícia Federal colheu elementos informativos do desvio de recursos públicos para a prática dos atos antidemocráticos, prática levada a efeito conjuntamente com o Deputado Federal GUSTAVO GAYER MACHADO DE ARAÚJO.”
Repare: elementos “informativos” do desvio “para a prática dos atos antidemocráticos”, “levada a efeito conjuntamente” com Gayer. O que era só uma hipótese inicial ganha ares de provas.
Mesmo assim, Moraes está descrevendo apenas onde tudo começou. Tanto que prossegue: “Tais fatos serviram de base à instauração da PET n. 12.042/DF, na qual foi concedida autorização para a investigação do parlamentar.”
Em seguida, o ministro aponta Gayer como “figura central” da “associação criminosa”:
“A Polícia Federal, na presente representação, narra a prática de quatro condutas criminosas praticadas por associação criminosa, cuja figura central é o Deputado Federal GUSTAVO GAYER MACHADO DE ARAÚJO.”
Dessa forma, o trecho passa a impressão de que a “associação criminosa” de Gayer com Cavalcante está envolvida no financiamento do 8/1 porque Cavalcante chegou a ser preso por isso; mas a PF não incluiu o 8/1 na descrição dessa hipótese criminal, ou seja, não apontou envolvimento de Gayer neste ponto.
O próprio Moraes apresenta, nos termos abaixo, as 4 hipóteses criminais, todas elas dissociadas do 8/1, inclusive a de associação criminosa.
“PECULATO DESVIO, SUPOSTAMENTE CONFIGURADO NA CONTRATAÇÃO DO ASSESSOR JOÃO PAULO DE SOUSA CAVALCANTE (ART. 312, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL)”;
“PECULATO DESVIO, SUPOSTAMENTE CONFIGURADO ATRAVÉS DO USO DE VERBA PARLAMENTAR PARA O FUNCIONAMENTO DE EMPRESAS PARTICULARES (ART. 312, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL)”;
“AQUISIÇÃO DE ASSOCIAÇÃO COM POSTERIOR FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PARTICULAR/FALSIDADE IDEOLÓGICA PARA QUALIFICÁ-LA COMO ENTIDADE DO TERCEIRO SETOR, COM O FIM DE PERCEBER VERBAS PÚBLICAS (ART. 298 OU 299 DO CÓDIGO PENAL)”;
“ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA (ART. 288 DO CP)”.
Moraes, no entanto, contribui para a confusão quando faz, mais adiante, um resumo dos investigados:
Eis a parte de Gayer:
“4) Gustavo Gayer Machado de Araújo – Deputado Federal, apontado nas investigações como peça central da associação criminosa investigada e autor intelectual dos possíveis crimes acima descritos, responsável por direcionar as verbas parlamentares para atividades de particulares, as quais tinham o intuito de movimentar atos antidemocráticos, e autorizar a participação dos demais integrantes do grupo nestas atividades.”
Essa parte não fala em 8/1, mas, como costuma acontecer com decisões de Moraes, ela é mal escrita, truncada, displicente, porque fala de Gayer como direcionador de verbas parlamentares para “atividades de particulares, as quais tinham o intuito de movimentar atos antidemocráticos”.
Ou seja: as atividades dos particulares (outras pessoas/empresas) tinham esse intuito genérico, que, tratado dessa forma, dá margem a interpretações de que pode ou não estar ligado ao 8/1. Se o ministro anda vendo “atos antidemocráticos” em quase tudo, talvez veja também em produtos da lojinha Desfazueli. Ou simplesmente não quis entender a base da própria decisão, e acabou deixando uma ponta solta no ar.
Fato é – objetivamente – que o 8/1 não aparece nas hipóteses criminais que basearam as diligências solicitadas pela PF, com parecer favorável da PGR, nem no resumo dessas quatro hipóteses na decisão do ministro do STF.
Setores da imprensa, no entanto, atribuíram à PF a acusação de que Gayer financiou o 8 de janeiro de 2023.
E o que fizeram ativistas nas redes sociais, com base em prints de manchetes imprecisas ou erradas? Ridicularizaram a PF e, claro, Moraes, por terem supostamente acusado o deputado de financiar com dinheiro público de gabinete um “ato antidemocrático” ocorrido 24 dias antes da posse dele no cargo, tomada em 1 de fevereiro de 2023. Aplicaram até a expressão “use sua criatividade”, que apareceu no escândalo da Vaza Toga, para ironizar os métodos forçados do gabinete do ministro do STF.
Isso macula ainda mais a credibilidade do sistema de Justiça e beneficia Gayer na opinião pública, porque se refuta um ponto que não é o foco da operação como se fosse, ignorando-se o esquema de fato apontado.
Resumo do caso:
- A hipótese investigativa inicial da PF – do envolvimento de Gayer no financiamento do 8/1 com dinheiro público – carecia de lógica e, pelo menos, foi descartada depois, mas não ter deixado claro nem o descarte, nem que havia mais hipóteses de desvios de recursos públicos para outros fins, deu margem à confusão que se seguiu.
- A PGR poderia ter deixado mais claro o descarte, mas não deixou, de modo que a ponta solta reapareceu em trechos da decisão de Moraes, ainda que fora da lista das hipóteses criminais.
- A imprensa, embora induzida a erro pelas autoridades (sobretudo Moraes) e pela pressa do jornalismo em noticiar as suspeitas que baseiam operações, poderia ter se atido às quatro hipóteses criminais elencadas com destaque nos três documentos (PF, PGR e STF), mas turbinou a ponta solta da suspeita inicial como uma acusação final.
- Os ativistas de redes sociais poderiam verificar o conteúdo dos documentos, em vez de explorar politicamente manchetes sobre eles, mas aí, claro, seria esperar demais.
Haveria, por fim, menos confusão e hostilidade no debate público brasileiro se houvesse, para além de mais honestidade intelectual, maior zelo de todos pela linguagem e pela clareza.
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