A humilhação dos militares na enchente
A tragédia no Rio Grande do Sul escancarou que, na tentativa de limpar a barra com quem não perdoou as décadas de ditadura, os generais acabaram se sujando até com quem era grato pelo golpe de 1964
A cena nasceu como clássico, antes mesmo de uma música ridícula ser acrescentada nos vídeos que passaram a disseminá-la a partir de então: soldados enfileirados abastecem um caminhão com pequenas garrafas d’água para ajudar as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul.
O procedimento é padrão, repete-se em vários vídeos expostos pelo próprio Exército — fica menos esquisito com cargas maiores e mais pesadas —, mas o vídeo das pequenas garrafas é apenas um dos vários que foram usados para ridicularizar as Forças Armadas durante os esforços contra a tragédia das chuvas.
Os militares reagiram. O comandante do Exército, general Tomás Paiva, deu entrevistas para reclamar de desinformação — “É o que mais tem prejudicado nosso trabalho. Ela impede a sinergia que é fundamental para as ações que são imprescindíveis neste momento nos órgãos governamentais” — e dar conta dos esforços no Rio Grande do Sul de quase 30.000 militares, que usam 1,5 mil veículos, entre viaturas e lanchas, e montaram cinco hospitais de campanha para socorrer as vítimas das águas.
A atuação do Exército na ajuda ao Rio Grande do Sul está bem registrada nas redes sociais da própria instituição, mas só os próprios militares parecem dispostos a falar bem da Operação Taquari 2.
Desilusão
As cenas de veículos quebrados e da impotência de soldados em meio às águas são compartilhadas por pessoas que se desiludiram com os militares ao longo do governo Jair Bolsonaro. O ápice da desilusão ocorreu na transição para o governo Lula, quando essas pessoas acreditaram que as Forças Armadas poderiam (e deveriam) ter feito algo para evitar o posse do petista.
A interpretação de que o famigerado artigo 142 permitiria aos militares intervir na dinâmica dos três poderes da República foi alimentada por Bolsonaro como uma ameaça, mas também como uma garantia. Foi um jeito de Bolsonaro ganhar mesmo perdendo. Ele colocou o sistema eleitoral em dúvida enquanto articulava alternativas para permanecer no poder. Como mostraram as investigações da Polícia Federal, apenas o comandante da Marinha topou.
A culpa dos militares
Agora, enquanto o ex-presidente passeia pelo Brasil para impulsionar candidaturas para as eleições municipais mesmo depois de ficar inelegível, os militares, que compuseram seu governo com destaque, carregam o fardo de não ter bancado um golpe militar. Não são de todo inocentes nessa história, contudo.
Os militares curtiram o protagonismo do governo Bolsonaro. Encararam a participação na política como uma possibilidade de redenção, após décadas de má fama pelos 20 anos de ditadura. E endossaram o ilusionismo de Bolsonaro.
Nas últimas pesquisas de popularidade, divulgadas no segundo semestre de 2023, a confiança nas Forças Armadas registrou os menores índices históricos. Pesquisa Datafolha indicou que apenas 34% dos brasileiros consideram os militares confiáveis, uma queda de 11 pontos desde 2019, quando começou o governo Bolsonaro.
Eleitorado bolsonarista
Parte do desgaste de imagem se deve à participação no jogo político. Para 61% dos entrevistados, os militares participaram de “irregularidades” no governo Bolsonaro. Mas outra pesquisa, feita pela Quaest, mostrou que a maior queda de popularidade dos militares foi entre o eleitorado bolsonarista.
De dezembro de 2022 a agosto de 2023, exatamente os meses de transição de Bolsonaro para Lula, o índice dos bolsonaristas que diziam “confiar muito” nos militares caiu de 60% para 40%. No eleitorado em geral, a queda foi de 10 pontos (a metade), de 43% para 33%.
Esse eleitorado desconta, agora, a frustração de uma expectativa que os militares deveriam ter quebrado ao longo do governo Bolsonaro. Na tentativa de limpar a barra com quem não perdoou as décadas de ditadura, os comandantes, generais e tenentes acabaram se sujando até com quem era grato pela intervenção de 1964.
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