O problema do cinema brasileiro e seu antídoto
O cinema brasileiro padece de um problema facilmente reconhecível: falta-lhe sonho, imaginação, fantasia. Esse problema tem várias causas. A principal delas se relaciona ao Cinema Novo. A geração de Glauber Rocha estava muito preocupada com questões sociais...
O cinema brasileiro padece de um problema facilmente reconhecível: falta-lhe sonho, imaginação, fantasia. Esse problema tem várias causas. A principal delas se relaciona ao Cinema Novo. A geração de Glauber Rocha estava muito preocupada com questões sociais, com a pobreza e a miséria, e em mudar a realidade brasileira. O cinema que eles fizeram se tornou paradigmático e moldou tudo o que veio depois. Mesmo o cinema comercial feito depois da Retomada do Cinema Brasileiro, filmes como Cidade de Deus e Tropa de Elite, tem ainda essa verve realista. Falta sonho ao cinema brasileiro. Falta imaginação, fantasia, mas, principalmente, sonho.
A propósito, é a qualidade de sonho que Ingmar Bergman atribuía ao cinema de Tarkóvski – para ele, o maior de todos os cineastas. “Tarkóvski é o maior de todos porque se move no espaço do sonho”, dizia.
De fato, o sonho é fundamental para o cinema de Andrei Tarkóvski. Ele encenou vários sonhos que ele próprio teve em seus filmes. Inclusive, sonhos anotados em seus Diários, escritos entre 1970 e 1986.
Também, nos sete longas-metragens que realizou, os sonhos dos personagens são centrais, especialmente no primeiro, A Infância de Ivan. Ele costumava representá-los não de modo óbvio, em preto e branco ou sépia, mas perfeitamente integrados na narrativa, sem grandes distinções.
Para entender Tarkóvski é preciso voltar a um filósofo profundamente influente para sua obra. Trata-se de Pavel Florenski, padre ortodoxo russo, historiador da arte, filósofo da religião e da cultura.
No livro Iconostasis, Florenski cita as primeiras palavras da Gênesis: “No princípio Deus criou o céu e a terra”. Mas esses dois mundos se tocam. O sonho, para o filósofo, é “o primeiro degrau da vida no invisível, o primeiro e o mais simples, tanto que o mais familiar”.
Em certa ocasião nos Diários, Tarkóvski faz uma afirmação sobre os sonhos: “Descobri a verdade sobre os sonhos: um realismo espiritual”. Nada mais sintonizado com Florenski: para ele, o mundo onírico pode ser tão real quanto o próprio ser – se refletir uma visão ontológica do mundo.
Para Florenski: “O sonho é por vezes o signo da passagem de uma esfera a outra, é um símbolo. De quê? Para o mundo celeste: o símbolo do terrestre, e para o mundo terrestre: o símbolo do celeste.”
Por seu caráter simbólico e arquetípico, o sonho se assemelha à arte. É o próprio Tarkóvski que cita a frase a seguir nos seus Diários no dia 26 de abril de 1986: “A arte é um sonho que encarnou”.
Tal definição serve muito bem à obra cinematográfica de Tarkóvski, que tem, do começo ao fim, uma atmosfera onírica. Onírica e transcendente. O sonho para Tarkóvski não é só fantasia, mas uma forma de reconexão com o divino, entre o céu e a terra.
O cinema brasileiro, voltado para questões sociais, esqueceu de tais questões transcendentais. Curiosamente, Tarkóvski vivia num país comunista em que a religião era reprimida, especialmente na arte. Seus embates com as autoridades soviéticas eram constantes, inclusive por causa das referências a Deus nos filmes, o que culminou no exílio na Itália já no final da vida.
Apesar disso, Tarkóvski deixou uma obra profundamente religiosa e onírica. Tudo o que falta ao cinema brasileiro.
*Josias Teófilo é cineasta, jornalista, escritor e fotógrafo brasileiro
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