Banalização da imagem e o retorno ao analógico
Num passado não tão distante, um fotojornalista tinha à sua disposição filmes fotográficos que variavam entre 12 e 36 poses. Tais filmes precisavam ser revelados, e os fotogramas serem impressos, para se obter uma imagem. Um erro em qualquer fase poderia inviabilizar o registro. Hoje, qualquer um (e não apenas profissionais) tem acesso a câmeras fotográficas e filmadores em smartphones – que podem filmar com qualidade análoga a uma câmera de cinema, em 4k...
Num passado não tão distante, um fotojornalista tinha à sua disposição filmes fotográficos que variavam entre 12 e 36 poses. Tais filmes precisavam ser revelados, e os fotogramas serem impressos, para se obter uma imagem. Um erro em qualquer fase poderia inviabilizar o registro. Hoje, qualquer um (e não apenas profissionais) tem acesso a câmeras fotográficas e filmadores em smartphones – que podem filmar com qualidade análoga a uma câmera de cinema, em 4k…
O desenvolvimento técnico pode produzir um retraimento na habilidade humana. Antes, um fotógrafo tinha que saber fotometrar, lidar com filme fotográfico e revela-lo, e até ampliar as fotos. Hoje ele pode se contentar em clicar na tela de um smartphone ou usar uma câmera digital no modo automático.
Além disso, há uma abundância de imagens. Num iPhone, por exemplo, cabem dezenas de milhares de fotos e vídeos em alta resolução. Há tutoriais na internet comparando vídeos feitos com iPhones e câmeras profissionais de cinema – quem não é profissional não consegue distinguir uma da outra.
Existe até um exagero na resolução dos equipamentos: smartphones que filmam em 6k, televisões com resolução de 8k. Ora, numa tela de TV ninguém consegue distinguir a diferença entre 2k e 4k – só na tela de cinema é possível realmente ver a diferença. A resolução virou um fetiche comercial.
A abundância leva à banalidade – com tantas imagens, elas perdem valor. Ficamos sobrecarregados. E qualquer um se sente capaz de realizá-las, o que tem afetado diretamente profissionais que trabalham com imagens. Jornais recentemente tem demitido equipes inteiras de fotojornalistas, como, por exemplo, o Jornal do Commercio do Recife.
Também no audiovisual existe um aumento desproporcional na produção: festivais de cinema recebem quantidades tão grandes de filmes que é impossível assistir a todos. Muitos festivais se sustentam financeiramente com o valor das inscrições – como a maior parte das obras não vai nem ser vista, dá-se prioridade aos cineastas já conhecidos pela curadoria.
Na internet, cada dia mais não-profissionais produzem conteúdo audiovisual e conseguem chamar bastante atenção com seus trabalhos, seja de humor, entretenimento ou política. Na verdade, a linguagem amadora foi incorporada definitivamente a essas áreas – a publicidade e a política têm se utilizado cada vez mais de vídeos selfie, da imagem tremida dos celulares, mesmo que isso seja algo meticulosamente pensado.
Nesse contexto, tem surgido um movimento oposto, do retorno ao analógico, ao registro em película, tanto na fotografia como no cinema. A Kodak recriou o filme Ektachrome, que havia sido descontinuado, e relançou também câmeras filmadoras em 16mm. A Leica relançou em 2022 a sua famosa Leica M6.
No cinema, Quentin Tarantino continua fazendo seus longas-metragens em película. Os Oito Odiados foi filmado em película 70mm, um formato caro e luxuoso do cinema clássico, na qual foi produzido Lawrence da Arábia, de David Lean, e A Noviça Rebelde, de Robert Wise. Seu último filme, Era uma vez em Hollywood, foi filmado em película 35mm.
De repente, em meio a toda a facilidade e barateamento do digital, há um retorno a processos de captação de imagem que são caros, tecnicamente complicados e menos previsíveis que no digital. Há quem diga que se trate de saudosismo.
Talvez não o seja. A imagem captada de forma analógica continua insuperável em termos de qualidade. O digital ainda não a ultrapassou, apesar de ser mais prático e rápido. É que o analógico é uma captação química do real: o filme é sensibilizado pela própria luz da imagem no âmbito molecular. Já o digital é uma captação matemática da realidade.
Por mais que o suporte final seja digital (no caso, a foto é vista num computador ou em tela de celular, o filme numa televisão ou em projeção digital), a qualidade da captação é definitiva. E mais: fotografar ou filmar em analógico exige um grau de atenção, cuidado e profissionalismo muito maior. Primeiro porque não dá para ver o registro no momento: é necessário um grau de efetividade. Segundo, porque é muito mais caro.
De uma forma ou de outra, isso fica impresso no resultado final. Em meio à banalidade provocada pela abundância de imagens digitais, o retorno ao analógico se tornou uma alternativa viável.
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