A regra é clara A regra é clara
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A regra é clara

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Felippe Hermes
8 minutos de leitura 15.11.2022 16:41 comentários
Economia

A regra é clara

Foi em 1992 que Elon Musk, até então um estagiário no Bank of Nova Scotia, propôs ao seu chefe um plano multibilionário para adquirir dívidas de países da América Latina, como Brasil e Argentina. Para sorte de Musk, que escapou de ser um bem sucedido trader, e do Brasil, o plano não foi adiante. Este período marcou uma dura batalha entre as autoridades monetárias da região e os Estados Unidos em busca de uma renegociação da temida dívida externa, que havia levado a América Latina a viver sua década perdida nos anos 80...

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Felippe Hermes
8 minutos de leitura 15.11.2022 16:41 comentários 0
A regra é clara
Foto: Adriano Machado/Crusoé

Foi em 1992 que Elon Musk, até então um estagiário no Bank of Nova Scotia, propôs ao seu chefe um plano multibilionário para adquirir dívidas de países da América Latina, como Brasil e Argentina. Para sorte de Musk, que escapou de ser um bem sucedido trader, e do Brasil, o plano não foi adiante. Este período marcou uma dura batalha entre as autoridades monetárias da região e os Estados Unidos em busca de uma renegociação da temida dívida externa, que havia levado a América Latina a viver sua década perdida nos anos 80.

Os EUA haviam concordado em apoiar a região por meio do chamado Plano Brady, que consistia em o país comprar as dívidas de países latinoamericanos e posteriormente renegociar em um carnezinho gostoso de longas prestações. Para estar apto ao Plano Brady, porém, países da região necessitavam adquirir uma certa quantia de títulos emitidos pelos EUA, que poderiam ser comprados convertendo seus próprios títulos neste novo. Ocorre que, os papéis da dívida local estavam sendo negociados a cerca de 25% do valor de face, enquanto os EUA se comprometiam a pagar por eles 45%. Foi essa a visão de Musk, e foi o que os países da região fizeram.

Argentina, Colômbia e México aderiram ao plano por meio de crédito no FMI para comprar tais títulos. Já o Brasil, não parecia agradar ao fundo. O FMI não gostava da nossa ideia de URV. Achava complexa e que não iria adiante. Para resolver a questão, Pedro Malan e Gustavo Franco montaram uma operação de guerra no Bacen. Por meio de um trader do JP Morgan baseado no subsolo do Bacen em Brasília, passaram a comprar estes títulos no mercado, sem que ninguém soubesse que era o próprio governo brasileiro quem estava comprando. Com este esforço heróico dos membros do Bacen, o país se viu livre para renegociar as dívidas e levar adiante o Plano Real.

A relação entre o Bacen e o governo sempre foi uma relação complexa. Temos um grande banco, com um único acionista e o poder de criar dinheiro. Trata-se de algo tentador para a maior parte dos países, como a Argentina. Ligando a sua impressora, o Bacen poderia facilmente colocar bilhões no caixa do governo. E de fato é o que ocorria por aqui, até 1986, com a Conta Movimento. Por sorte, o Brasil percebeu que criar dinheiro novo e manter um governo sem qualquer limite de gastos era um convite ao desastre. Na constituição de 1988, sacramentou-se essa decisão criando a Regra de Ouro.

Basicamente, a regra estabelece que o governo não pode emitir dívidas em valor superior às suas despesas de capital (de forma simplificada, despesas de investimentos).

Na prática, o governo é proibido de ligar a impressora para pagar o cafezinho, as despesas previdenciárias e outros gastos do dia a dia. Exceto, claro, se o Congresso autorizar (lembre-se de que quebrar a lei pode ser válido se você tiver 513 pessoas para dividir a culpa com você). A Regra de Ouro é a primeira e mais antiga das nossas regras fiscais. E ao longo das últimas décadas, nos tornamos um país viciado em criar novas regras. Essa imensa batalha para separar o governo (e não o estado), da moeda, nos levou a uma Lei de Responsabilidade Fiscal em 2000, uma regra do Teto de Gastos em 2017 e a uma lei ainda mais recente que separa por completo a contabilidade do Tesouro e a do Bacen (em 2019).

Na última década o Bacen transferiu ao governo por volta de R$1 trilhão em recursos, o que foi usado para abater a dívida pública. Foi o lucro do banco que tem o Tesouro como único acionista (note que o FED, e qualquer outro banco central, também possui lucro. Por lá, porém, esses lucros compõe reservas, não são repassados ao Tesouro). Isso é o que alguns auditores do TCU apontam como “a maior das pedaladas”, uma vez que constitui um banco público financiando o governo sem expressa autorização do congresso (aquele lance de ter mais gente dividindo a culpa), portanto um crime. 

Fato é: superamos esse problema em 2019. Outro fato, porém, é que todas essas regras e freios que criamos para controlar nossos próprios impulsos de país emergente, seguem sob uma imensa ameaça.

Veja, se para nos livrarmos da hiperinflação tivemos de substituir os gastos que o governo bancava com criação de dinheiro por impostos, por outro, a tendência de aumentos de gastos tornou quase inviável continuar sustentando a máquina pública. Entre 2001 e 2015, os gastos públicos cresceram 463,5%, contra uma alta de 166,8%. O carrapato engordou, e a capacidade do boi de prover alimento para a família carrapato ficou seriamente comprometida. Foi este motivo que nos levou a criação do Teto de Gastos, um ajuste duro, mas necessário diante das circunstâncias. E é este o motivo de a Regra de Ouro estar na berlinda.

Para manter a máquina pública rodando e os gastos primários sendo pagos com impostos, e não com dívida, o governo precisa tomar uma decisão entre duas escolhas e encontrar fontes de receitas novas. Quando Jair Bolsonaro assumiu em 2019, o país tinha um rombo de cerca de R$249 bilhões, que teve de ser negociado junto ao Congresso em forma de crédito suplementar. O aumento da carga tributária com maior arrecadação sobre alguns impostos e a venda de ativos do governo e suas empresas, equilibrou a situação, que em 2022 se tornou positiva em R$120 bilhões de folga. O novo governo, porém, não espera contar com vendas de ativos, e não quer anunciar aumentos de impostos (ainda). De modo que planeja mudar a regra do jogo.

Para não se queimar com a população, o governo Lula pode acabar queimando a reputação do país. É possível, e provável, que a Regra de Ouro seja revista, o que permitiria ao Bacen atuar comprando títulos públicos e pressionando os juros para baixo. Isso significaria espoliar os poupadores, uma vez que os juros não seriam realistas. Essa atitude permitiria ao governo expandir seus gastos e ao mesmo tempo reduzir o quanto paga de juros por se endividar. Um total contrassenso (o que foi exatamente o que derrubou Liz Truss do cargo de primeira ministra no UK). É um passo perigoso, pois fantasia o principal indicador de uma economia: quanto custa o dinheiro. Politicamente isso evitaria que Lula se indisponha com a classe média aumentando impostos, ou ainda o desgaste político de ter de pedir crédito ao congresso. 

Já a mudança do Teto de Gastos é algo menos grave que o governo literalmente criar dinheiro, mas igualmente desastroso. Atualmente, um governo que queira gastar além mais precisa ir ao congresso, que é quem faz e manda no orçamento, se justificar. É um desgaste político grande. E é ótimo que seja assim. Sem o Teto, o governo pode gastar seu dinheiro sem ter de explicar o quanto e pra onde está indo o dinheiro. Estamos abrindo mão de mecanismos fiscais relevantes para garantir a estabilidade do país, sem a mesma virtude de quem lutou para estabilizar e enfim dar crédito na praça ao Brasil. É um caminho populista perigoso, com disfarce de responsabilidade.

Propõe-se no lugar criar um “Teto Da Dívida”. Uma fantasia dos críticos do Teto de Gastos de que deve haver um limite para os juros da dívida. Non sense. Tal hipótese age como se o governo de fato pudesse determinar o quanto vale o dinheiro. Um risco absoluto para o país. Um teto de dívida implica que o governo pode atuar com diversas alternativas. Uma inflação maior, ou juros menores na canetada, ambas ideias danosas ao país, levariam o governo a cumprir a regra fiscal. Teríamos aí um total contrassenso. O governo cumpre a regra fiscal, mas isso é ruim para o país. Para além dessa ideia estapafúrdia, há ainda a questão moral. Com o Teto de Gastos o governo deve explicações, com o Teto da dívida, não há uma relação direta com aumento de gastos. Basta colocar a culpa no mercado malvado que quer cobrar mais caro para financiar o governo generoso que pretende gastar para distribuir benesses.

E quem poderá discordar? Ninguém. Ou alguém tem a ilusão de que é possível defender a taxa de juros no Brasil? 

Eis o caminho que podemos trilhar. Uma casa sem teto, ou piso. Um dano imenso a reputação do Brasil em troca de talvez, na melhor das hipóteses, garantir uma Brahma e uma alcatra no final de semana.

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