Mario Sabino: “A terra arrasada da Ucrânia”
"April is the cruellest month” T. S. Eliot Há quase cem anos, o poeta anglo-americano T. S. Eliot publicava The Waste Land – a terra arrasada, devastada, estéril. Diante de uma modernidade arrasada pela Primeira Guerra Mundial, a humanidade devastada, a falta de harmonia e a estéril existência do homem foram retratadas em um longo e fragmentado poema...
“April is the cruellest month”
T. S. Eliot
Há quase cem anos o poeta americano T. S. Eliot publicava The Waste Land – a terra arrasada, devastada, estéril. Diante de uma modernidade arrasada pela Primeira Guerra Mundial, a humanidade devastada, a falta de harmonia e a estéril existência do homem foram retratadas em um longo e fragmentado poema.
O poema começa com um verso emblemático: “Abril é o mais cruel dos meses”. Em abril de 2022, pouco mais de um mês após a invasão da Ucrânia (foto) pela Rússia, a crueldade da guerra contra o povo ucraniano pode ser vista ao vivo pela televisão, pelo Facebook, pelo Instagram, pelo Tweeter.
Os canais de notícia veiculam 24 horas por dia o morticínio: uma guerra feita de longe, com lançamento de mísseis indiscriminadamente sobre as cidades, com a destruição de prédios residenciais, hospitais, escolas, universidades, maternidades… mas também uma guerra que mata de perto, por tanques que disparam conscientemente contra alvos civis.
Em pleno inverno, a devastação da cidade de Mariupol, uma terra morta é o retrato trágico de uma guerra sem sentido, iniciada pela vaidade autoritária de Vladimir Putin.
Oito anos após anexar a península da Crimeia, agora, sob o falso e mentiroso pretexto de proteger cidadãos russos na região do Donbass – Donestski e Luhansk-, a Rússia invade a Ucrânia pelo leste, pelo norte e pelo sul, o que desmente a justificativa russa.
O povo ucraniano resiste. O presidente Volodymyr Zelensky à frente, com tenacidade, permanecendo no coração do país, os soldados que matam e morrem, os civis, advogados, atores, engenheiros, homens e mulheres em armas, lutando por seu país, contra o agressor, agora inimigo nem tão estrangeiro, pois a Ucrânia é a terra para muitos russos, assim como ucranianos vivem na Rússia.
A morte está presente em Kharkiv, em Chernihiv, em Zhytomyr, em Zhaporizhia, em Kherson, em Mykolaiv. Mísseis já atingiram Kyiv, a capital, e até mesmo Lviv, no extremo oeste do país, quase divisa com a Polônia. Odessa teme por sua integridade e pela vida de seus cidadãos.
Além das bombas, há o frio, falta a água, não há comida. O enterro dos mortos vai ter que esperar, ou então covas coletivas abrigam sem condolências as vítimas de uma guerra injusta.
Para além da violação do Direito Internacional, os crimes de guerra de Vladimir Putin se acumulam em pouco mais de um mês. Como numa partida de xadrez, Putin move suas peças de destruição ignorando as regras internacionais.
Não há distinção entre alvos civis e militares, aliás, o ataque a alvos civis mostra a intenção de transformar a Ucrânia em uma terra arrasada. As Convenções de Genebra, nas mãos de Putin, tornam-se em “Ein stück papier”, como afirmou Ferdinand Lassalle. O vento frio leva o cheiro de morte sob o fogo dos lançadores de mísseis, sem sermão. Sem adeus.
As notícias do front dão conta dos crimes de guerra, pois assassinatos intencionais de pessoas já foram registrados; o tratamento desumano se espalha pela região invadida pelas tropas russas, que causam intencionalmente grande sofrimento ou lesões graves em civis, crianças, mulheres, idosos. A extensa destruição de propriedades – principalmente civis, áreas residenciais inteiras, devastação de cidades sem nenhuma justificava por necessidade militar. Pessoas inocentes são tomadas como reféns e deportadas ilegalmente para o território russo.
Embora ignorado por Putin, o Estatuto de Roma, que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional, dispõe com rigor sobre o crime de agressão, sobre os crimes de guerra e sobre os crimes contra a humanidade. Ao matar famílias ucranianas inteiras, ao dizimar centenas de crianças, os soldados russos, Putin à frente, está muito próximo do genocídio.
As chamas ardem na Ucrânia, enquanto a terra morre. O som do trovão vem dos céus, em mísseis disparados contra alvos civis, contra uma população pacífica.
As planícies da Ucrânia, que alimentam o mundo, recebem agora uma chuva negra, de chamas e dor. A terra está negra, não pela fartura, mas pelo sangue que esvai, escurecendo o horizonte da vida.
Ler o poema de T.S.Eliot hoje, em plena guerra na Ucrânia, injustamente provocada pela Rússia, vendo, ouvindo e sentindo a dor e o sofrimento do povo ucraniano, faz ressoar a voz de outro poeta, símbolo de uma nação e de uma língua: o ucraniano Tarás Shevchenko (1814-1861).
No século XIX, Shevchenko foi preso, proibido de escrever e condenado a viver no exílio pelo Czar Nicolau I, do então Império Russo.
Shevchenko escreveu o poema Testamento (Kobzar. Poetry of Taras Shevchenko in Ukrainian, English and French. Toronto: Taras Shevchenko Museum, 2014, p. 141), no qual legou para a posteridade seu último desejo, na tradução de Lydia S. Dniprovey:
“Quando eu morrer, sepultai-me
Dentro da colina,
No meio da vasta estepe,
Da minha amada Ucrânia,
De onde posso contemplar,
Amplos campos ao redor
E ouvir as correntes do Dniper,
Descer com ruidoso rumor.”
Ontem como hoje, a guerra, o horror da guerra, tira da poesia o lirismo, mas permite a reflexão sobre o destino daqueles que injustamente causam dor e sofrimento a vítimas inocentes, como no poema de Taras Shevchenko, ao lembrar o rio Dniper, que atravessa o coração da Ucrânia:
“Quando ele levar da Ucrânia
O sangue vil, inimigo
Para o fundo do mar”
Diante da realidade da guerra ainda há esperança na construção da paz para o povo ucraniano, que há de voltar a ser uma imensa família livre da gloriosa Ucrânia. Slava Ukraini!
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