Pesquisa de Campo Sobre o Sexo Ucraniano
"Pesquisa de Campo Sobre o Sexo Ucraniano" poderia ser o título das gravações que um eufórico Arthur do Val, agora ex-candidato ao governo de São Paulo, fez depois de sua viagem "humanitária" ao país do leste europeu. Como já é bem sabido, "Mamãe Falei" achou as ucranianas não apenas deslumbrantes, mas "fáceis, porque pobres". Na verdade, "Pesquisa de Campo Sobre o Sexo Ucraniano" é o título de um dos romances mais célebres da literatura ucraniana dos últimos 30 anos [...]
“Pesquisa de Campo Sobre o Sexo Ucraniano” poderia ser o título das gravações que um eufórico Arthur do Val, agora ex-candidato ao governo de São Paulo, fez depois de sua viagem “humanitária” ao país do leste europeu. Como já é bem sabido, “Mamãe Falei” achou as ucranianas não apenas deslumbrantes, mas “fáceis, porque pobres”.
Na verdade, “Pesquisa de Campo Sobre o Sexo Ucraniano” é o título de um dos romances mais célebres da literatura ucraniana dos últimos 30 anos. Ele foi publicado pela historiadora e ficcionista Oksana Zabuzhko, em 1996. De cara, causou muita polêmica por algumas passagens de sexo e violência sexual. Depois, acabou tendo o seu valor literário reconhecido.
Não achei tradução do livro em português. Aliás, se dependesse de lançamentos portugueses e brasileiros, continuaria no mesmo estado de ignorância de dois dias atrás, quando quis descobrir quem são os escritores ucranianos, e do que eles falam. Há muito pouco na nossa língua. (Nikolai Gogol não vale, porque escreveu em russo, embora tenha nascido nos cafundós da Ucrânia; além disso, ele viveu no século XIX e eu estava interessado nos contemporâneos.)
Descobri que há um bom número de autores ucranianos traduzidos em inglês e fiquei com vontade de ler dois deles, além de Zabuzhko: Yuri Andrukovich e Sergey Zhadan. O primeiro é considerado o pai da literatura ucraniana pós-soviética e seu livro mais famoso é “Moskoviada” (1993), que narra uma viagem alucinatória do autor para Moscou, na qual fica definitivamente comprovado que a Ucrânia não é a Rússia, ao contrário do que pensa Vladimir Putin.
O segundo é o escritor jovem mais lido e conhecido de seu país (além de vocalista de uma banda punk chamada Zhadan and the Dogs). Ele é nativo de Kharkiv, cidade assolada pelos bombardeios russos nos últimos dias. Seu romance “The Orphanage” (O Orfanato), lançado em 2017 e traduzido recentemente nos Estados Unidos, narra o périplo de um homem que tenta resgatar seu sobrinho de um vilarejo ocupado por milicianos armados pelos russos na região do Donbass. Não poderia ser mais atual.
Comecei pelo livro de Zabuzhko porque consegui comprá-lo por apenas dois dólares na Amazon. Pois é.
“Pesquisa de Campo do Sexo Ucraniano” fala da vida íntima de uma mulher jovem, antes e depois de 1991, ano em que a Ucrânia se desligou da União Soviética. Durante um período de estudo nos Estados Unidos, ela reflete sobre o seu relacionamento com um namorado violento, de quem ela tem dificuldade para se afastar.
Sua conclusão é que, depois de vários homens do meio acadêmico, russos pelo que se dá a entender, aquele era “o seu primeiro homem ucraniano”: “Um homem pronto, a quem você não precisou ensinar a língua, (…) com quem você pode não apenas trocar palavras, mas exercitar essa liberdade inédita de ser você mesma.” Dessa “liberdade” parece vir o apego doentio da narradora ao seu amante abusivo.
Nesse ponto, tive um daqueles estalos que a ficção provoca de vez em quando – a sensação de que você conseguiu enxergar o mundo pelos olhos de alguém muito diferente de você. Zabuzhko me deu a dimensão exata da estupidez do nosso Mamãe Falei.
Para qualquer mulher, há um insulto em ser tratada como “fácil, porque pobre”. Para mulheres ameaçadas pela morte, ou talvez pelo estupro em uma zona de guerra, o insulto desse olhar cínico é ainda maior. O livro de Zabuzhko ilumina um ponto onde a questão da liberdade feminina se mistura com a questão da liberdade da própria Ucrânia, sempre sob assédio russo. Com isso, o insulto às mulheres ucranianas ganhou para mim uma camada histórica. Cabe mesmo muita coisa dentro de uma frase estúpida.
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