O debate público brasileiro à luz do caso Aécio
O problema de um debate público “fulanizante” como o brasileiro, no qual se debatem pessoas, grupos e instituições, não ideias e coisas, é que as posições tomadas a respeito de qualquer tema se baseiam mais na empatia e/ou na repulsa a um dos lados em confronto do que em análise criteriosa das nuances de cada caso específico...
O problema de um debate público “fulanizante” como o brasileiro, no qual se debatem pessoas, grupos e instituições, não ideias e coisas, é que as posições tomadas a respeito de qualquer tema se baseiam mais na empatia e/ou na repulsa a um dos lados em confronto do que em análise criteriosa das nuances de cada caso específico.
O ladismo, quando estendido das arquibancadas deste país do futebol aos meios de comunicação e cultura, não raro confere a seu adepto profissional ou ocasional, consciente ou inconsciente, ares de defensor de um bem comum a ser protegido e de combatente de um mal personificado, mas prejudica a compreensão dos fatos na medida em que as próprias premissas do debate em questão ficam renegadas ao segundo plano, quando não convenientemente distorcidas em benefício do lado escolhido.
Quem debate pessoas, grupos e instituições não aceita, custa a aceitar ou finge não ver, por exemplo, que, mesmo aqueles que consideramos geralmente equivocados, moralmente desprezíveis, política ou ideologicamente adversários, são passíveis de acertar, ou de não estarem integralmente errados, em algum momento ou decisão, ainda que por motivos outros que não os que julgamos os adequados ou corretos.
Para ser justo, não basta gritar por Justiça, sacudindo bandeira e xingando o oponente.
É preciso enfrentar a tarefa de distinguir narrativas e fatos, mentiras e verdades, erros e acertos, a despeito de empatia e repulsa pessoais, por mais difícil que seja abstraí-las – e, mais ainda, reconhecê-las para admitir um erro de posição.
O caso de Aécio Neves é emblemático.
Apesar do repúdio aos corruptos, a decisão da Primeira Turma do STF pelo afastamento do senador tucano de seu mandato parlamentar e pelo seu recolhimento noturno acendeu de imediato uma luz em todos aqueles que se preocupam com o ativismo judicial dos ministros do Supremo de modo saudável e justificado em razão de decisões anteriores neste sentido – sendo a mais ilustrativa delas o fatiamento da votação do impeachment de Dilma Rousseff por Ricardo Lewandowski, que garantiu à petista a manutenção dos direitos políticos, mesmo com a cassação do mandato presidencial.
Luis Roberto Barroso, que votou contra Aécio, também tem um histórico de ativismo sobre o qual já escrevi numerosas vezes, como, por exemplo, nos casos de anulação de uma sessão da Câmara sobre o impeachment (como esquecer que o ministro omitiu o trecho final de um artigo do regimento em sua leitura no plenário?) e da revogação da prisão preventiva de cinco funcionários de uma clínica clandestina de aborto.
A preocupação com o supremo ativismo é legítima. O que não deveria resultar dela é uma tomada de posição baseada em “ladismo” contra o STF, como se ministros ativistas não pudessem, vez por outra, adotar posições, no mínimo, juridicamente justificáveis.
Dias atrás, questionei qual é o dispositivo da Constituição que veda expressamente a aplicação pelo Poder Judiciário de medidas cautelares “diversas da prisão” a parlamentares em exercício do mandato e impõe, no caso delas, a última palavra ao Congresso. No julgamento desta quarta-feira, o relator Edson Fachin repetiu a pergunta.
Onde está o dispositivo? Não existe.
O que existe é o artigo 53, segundo o qual “deputados e senadores… não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável”.
“Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.”
A prisão em flagrante por crime inafiançável não é o caso de Aécio, que pediu 2 milhões de reais a Joesley Batista para pagar advogados e usou intermediários para o recebimento das parcelas em dinheiro vivo.
A decisão da Primeira Turma se baseou no artigo 319 do Código do Processo Penal (CPP), que diz:
“São medidas cautelares diversas da prisão”, entre outras:
“V – recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos;
VI – suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais”.
Como ressaltou Barroso à imprensa, sobre o artigo 319:
“Esse dispositivo foi acrescentado ao Código de Processo Penal pelo Congresso Nacional, em 2011. Portanto, é o Congresso Nacional que definiu que essa não é uma hipótese de prisão. Portanto, com todo o respeito a todas as opiniões, não há uma dúvida jurídica aqui. O direito é claríssimo.”
Em outras palavras: a preocupação com que o STF legisle é legítima, mas a alegação frequente de que a Corte estaria legislando neste caso é descabida.
Como argumentou Fachin em plenário:
“Ao Poder Legislativo, a Constituição outorgou o poder de relaxar a prisão em flagrante, em juízo político. Estender essa competência para permitir a revisão por parte do Poder Legislativo das decisões jurisdicionais sobre medidas cautelares penais significa ampliar a imunidade para além dos limites da própria normatividade que lhe é dada pela Constituição. É uma ofensa ao postulado republicano e uma ofensa à independência do Poder Judiciário.”
Para o caso do deputado Jair Bolsonaro, contra quem o STF recebeu uma denúncia por incitação ao crime de estupro, a imunidade parlamentar não valeu.
“O conteúdo [a reação verbal à deputada petista Maria do Rosário, que o chamara de ‘estuprador’] não guarda qualquer relação com a função de deputado, portanto não incide a imunidade prevista na Constituição Federal”, alegou Luiz Fux na ocasião.
Para o caso de Aécio, na prática, ministros como Gilmar Mendes buscam ampliar a imunidade, fazendo um puxadinho na Constituição para impedir a aplicação do CPP, não sem abusar de argumentos políticos sobre o mandato obtido por voto popular.
Por ironia do destino, o próprio Aécio havia rebatido previamente essa alegação, quando, em pleno processo de impeachment, em agosto de 2016, disse a Dilma:
“Vossa Excelência recorre aos votos que recebeu como justificativa. Não é salvo-conduto. É delegação que pressupõe deveres e direitos. O maior dos deveres de quem recebe votos é o respeito a leis e à Constituição.”
Pois é.
Ainda que haja margem para debate no presente caso, dadas as tensões entre dispositivos da ordem jurídica, nota-se que, às vezes, até Barroso e Aécio têm razão.
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