“Paz e bens”, Rêgo Barros. Mas valeu pelo desabafo
O artigo do general Otávio do Rêgo Barros no Correio Braziliense é um dos assuntos principais nas redes sociais. O ex-porta-voz do presidente de Jair Bolsonaro deixou um pouco a devoção a São Francisco de Assis de lado, recuou até a Roma Antiga e partiu para cima do ex-chefe, sem citar o seu nome, numa sutileza de gladiador. Vou destacar boa parte: Legiões acampadas. Entusiasmo nas centúrias extasiadas pela vitória. Estandartes tomados aos inimigos são alçados ao vento, troféus das épicas conquistas...
O artigo do general Otávio do Rêgo Barros no Correio Braziliense é um dos assuntos principais nas redes sociais. O ex-porta-voz do presidente de Jair Bolsonaro deixou um pouco a devoção a São Francisco de Assis de lado, recuou até a Roma Antiga e partiu para cima do ex-chefe, sem citar o seu nome, numa sutileza de gladiador.
Vou destacar boa parte:
Legiões acampadas. Entusiasmo nas centúrias extasiadas pela vitória. Estandartes tomados aos inimigos são alçados ao vento, troféus das épicas conquistas. O general romano atravessa o lendário rio Rubicão. Aproxima-se calmamente das portas da Cidade Eterna. Vai ao encontro dos aplausos da plebe rude e ignara, e do reconhecimento dos nobres no Senado. Faz-se acompanhar apenas de uma pequena guarda e de escravos cuja missão é sussurrar incessantemente aos seus ouvidos vitoriosos: “Memento Mori!” — lembra-te que és mortal!
Os líderes atuais, após alcançarem suas vitórias nos coliseus eleitorais, são tragados pelos comentários babosos dos que o cercam ou pelas demonstrações alucinadas de seguidores de ocasião. É doloroso perceber que os projetos apresentados nas campanhas eleitorais, com vistas a convencer-nos a depositar nosso voto nas urnas eletrônicas, são meras peças publicitárias, talhadas para aquele momento. Valem tanto quanto uma nota de sete reais.
E mais:
Tão logo o mandato se inicia, aqueles planos são paulatinamente esquecidos diante das dificuldades políticas por implementá-los ou mesmo por outros mesquinhos interesses. Os assessores leais — escravos modernos — que sussurram os conselhos de humildade e bom senso aos eleitos chegam a ficar roucos. Alguns deixam de ser respeitados. Outros, abandonados ao longo do caminho, feridos pelas intrigas palacianas. O restante, por sobrevivência, assume uma confortável mudez. São esses, seguidores subservientes que não praticam, por interesses pessoais, a discordância leal.
Entendam a discordância leal, um conceito vigente em forças armadas profissionais, como a ação verbal bem pensada e bem-intencionada, às vezes contrária aos pensamentos em voga, para ajudar um líder a cumprir sua missão com sucesso.
E ainda:
A autoridade muito rapidamente incorpora a crença de ter sido alçada ao olimpo por decisão divina, razão pela qual não precisa e não quer escutar as vaias. Não aceita ser contradita. Basta-se a si mesmo. Sua audição seletiva acolhe apenas as palmas. A soberba lhe cai como veste. Vê-se sempre como o vencedor na batalha de Zama, nunca como o derrotado na batalha de Canas. Infelizmente, o poder inebria, corrompe e destrói!
E por fim:
As demais instituições dessa república — parte da tríade do poder — precisarão, então, blindar-se contra os atos indecorosos, desalinhados dos interesses da sociedade, que advirão como decisões do “imperador imortal”. Deverão ser firmes, não recuar diante de pressões. A imprensa, sempre ela, deverá fortalecer-se na ética para o cumprimento de seu papel de informar, esclarecendo à população os pontos de fragilidade e os de potencialidade nos atos do César.
A população, como árbitro supremo da atividade política, será obrigada a demarcar um rio Rubicão cuja ilegal transposição por um governante piromaníaco será rigorosamente punida pela sociedade. Por fim, assumindo o papel de escravo romano, ela deverá sussurrar aos ouvidos dos políticos que lhes mereceram seu voto: — “Lembra-te da próxima eleição!”
Em junho de 2019, durante o exercício da sua função de porta-voz, Rêgo Barros foi preterido pelo Exército e não ganhou a quarta estrela que lhe daria uma cadeira no Alto Comando da força. Reserva nele. Foi uma forma de o Exército mandar recado de desagrado a Jair Bolsonaro e os generais palacianos. Há cerca de um mês e meio atrás, Rêgo Barros levou o tranco final: foi chutado do Palácio do Planalto por Carlos Bolsonaro e o seu gabinete do ódio. O artigo é troco cheio de razões. Rêgo Barros foi um “escravo moderno abandonado ao longo do caminho, ferido pela intrigas palacianas”, para usar as suas próprias palavras. É no que dá a servidão voluntária, moderna ou não.
Para falar de Bolsonaro, o general Rêgo Barros faz referência a batalhas das Guerras Púnicas, Zama e Canas, entre Roma e Cartago. Roma ganhou a primeira batalha; Cartago ganhou a segunda. O general diz que Bolsonaro “vê-se sempre como o vencedor na batalha de Zama, nunca como o derrotado na batalha de Canas”. A imagem é erudita, mas um pouco infeliz, porque, ao final de todas as refregas, Roma destruiu Cartago. Não foi muito melhor a referência ao Rubicão: “A população, como árbitro supremo da atividade política, será obrigada a demarcar um rio Rubicão cuja ilegal transposição por um governante piromaníaco será rigorosamente punida pela sociedade”. Júlio César lançou a própria sorte, atravessou o Rubicão e veio, viu e venceu em Roma. Traçar Rubicão não serve para muita coisa, portanto.
A erudição do artigo não deixa de ser bacana, mas a realidade é que, se Rêgo Barros exprime também um desgosto político mais abrangente entre os fardados da ativa e da reserva, nada mudará na atitude da Forças Armadas em relação ao governo, ao contrário do que podem imaginar alguns. Além de obedientes à Constituição, como deve ser, os militares vêm sendo muito beneficiados por Bolsonaro. Foram poupados na reforma da Previdência — receberão salário integral ao se aposentar, sem idade mínima obrigatória e contribuição máxima de 10,5% ao INSS, contra o teto de 11,68% na iniciativa privada — e ganharam um bônus de 26,5 bilhões de reais. A “discordância leal” tem um preço.
Ao fim e ao cabo, vai ficar tudo na base do “paz e bens”, Rêgo Barros. Mas valeu pelo desabafo. Quem sabe um candidato de oposição use o seu artigo na campanha de 2022, num contexto mais desfavorável ao “governante piromaníaco”. Pode ajudar um pouco.
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