Gloria Maria é a nossa Catherine Deneuve
A jornalista Gloria Maria, da Rede Globo, deu uma entrevista que continua a causar comoção nas redes sociais. A entrevistadora, Joyce Pascowitch, perguntou-lhe o seguinte: "Nesses últimos anos, a TV mudou muito. Se modernizou, seriados, séries... Junto com isso, explodiu essa questão do assédio moral e do assédio sexual. Provavelmente, devia existir, mas, hoje em dia, está tudo muito na vitrine, né?" Gloria Maria respondeu: "Se você quer saber, eu acho isso tudo, basicamente, um saco. Por exemplo, hoje, tudo é racismo, tudo é preconceito... Eu, até hoje, na TV, tenho meus câmeras antigos, os técnicos que estão comigo há 40 anos, todos me chamam de 'Neguinha'. Eu nunca me ofendi, nunca me senti discriminada. Me chamam de uma maneira amorosa, carinhosa. É claro que se falam 'Ô, nega', não sei o quê, é outra coisa....
A jornalista Gloria Maria, da Rede Globo, deu uma entrevista que continua a causar comoção nas redes sociais. A entrevistadora, Joyce Pascowitch, perguntou-lhe o seguinte:
“Nesses últimos anos, a TV mudou muito. Se modernizou, seriados, séries… Junto com isso, explodiu essa questão do assédio moral e do assédio sexual. Provavelmente, devia existir, mas, hoje em dia, está tudo muito na vitrine, né?”
Gloria Maria respondeu:
“Se você quer saber, eu acho isso tudo, basicamente, um saco. Por exemplo, hoje, tudo é racismo, tudo é preconceito… Eu, até hoje, na TV, tenho meus câmeras antigos, os técnicos que estão comigo há 40 anos, todos me chamam de ‘Neguinha’. Eu nunca me ofendi, nunca me senti discriminada. Me chamam de uma maneira amorosa, carinhosa. É claro que se falam ‘Ô, nega’, não sei o quê, é outra coisa.”
Então, hoje, tudo é preconceito, tudo é assédio. Está chato. Estou há mais de 40 anos na televisão. Já fui paquerada muitas vezes, mas nunca me senti assediada moralmente. Acho que o assédio moral é uma coisa clara, não tem dubiedade. Não tem como você interpretar. O assédio é uma coisa que te fere, é grosseiro, te machuca, te incomoda, te desmoraliza.
Agora, a paquera, pelo amor de Deus… Eu estou cansada desse negócio. Os homens estão com medo. Eu quero ser paquerada ainda, gente, estou viva! Mas existe uma cultura hoje que ‘não pode’, e nós mulheres sabemos bem fazer a diferença de uma paquera para o assédio, um abuso sexual.”
Acho que esse mundo está muito chato. Essa coisa do politicamente correto é um porre. Eu não sou politicamente correta e não vou ser, não adianta, não venho de um mundo politicamente correto. Acho que politicamente correto é o caráter, a honestidade, a sua capacidade de olhar para o outro. Isso é politicamente correto. Agora, esse mundo em que a gente está, que vem muito da amargura das pessoas, da frustração das pessoas, isso eu não gosto, não aceito. Nessa eu não entro, não, sob nenhuma hipótese.”
Obviamente, a declaração foi comemorada por bolsonaristas, em especial porque a fala de Gloria Maria iria de encontro a pautas permanentes da Rede Globo. E virou alvo dos rigoristas do politicamente correto, que causaram a jornalista de ser alienada e legitimar o racismo e o sexismo. Enfim, ela foi acusada de ser uma mulher negra que, ao alcançar o sucesso, não consegue enxergar o que ocorre ao redor dela.
O mundo está mesmo um saco, Gloria Maria tem razão. Ao externar a sua impaciência com a patrulha, ela não legitimou o racismo e o sexismo. Nem deu qualquer justificativa para bolsonaristas se acharem no direito de postar memes racistas. Da mesma geração de Catherine Deneuve, ela igualmente parece não suportar tutelas e discursos vitimistas e de ódio, assim como a atriz francesa. Em 2018, logo depois do surgimento do movimento #metoo, na esteira dos escândalos protagonizados pelo produtor americano Harvey Weinstein, Catherine Deneuve assinou um manifesto no jornal Le Monde, juntamente com outras cem mulheres. O manifesto era contra certo tipo de feminismo que considera homens como inimigos.
Eis um trecho:
“O filósofo Ruwen Ogien defendia uma liberdade de ofender indispensável à criação artística. Da mesma forma, nós defendemos uma liberdade de importunar, indispensável à liberdade sexual. Nós somos hoje suficientemente informadas para admitir que a pulsão sexual é por natureza ofensiva e selvagem, mas nós somos também suficientemente esclarecidas para não confundir cantada malfeita e agressão sexual.
Nós somos conscientes, sobretudo, que a pessoa humana não é monolítica: uma mulher pode, no mesmo dia, dirigir uma equipe profissional e gostar de ser o objeto sexual de um homem, sem ser uma ‘vagabunda’ nem uma cúmplice vil do patriarcado. Ela pode vigiar para que o seu salário seja igual ao de um homem, mas não se sentir traumatizada para sempre por terem se esfregado nela no metrô, mesmo que isso seja considerado um delito. Ela pode até vislumbrar nisso a expressão de uma grande miséria sexual, ver como um não-acontecimento.
Como mulheres, nós não nos reconhecemos nesse feminismo que, para além da denúncia de abusos de poder, adquire o rosto de uma raiva dos homens e da sexualidade. Nós pensamos que a liberdade de dizer não a uma proposta sexual não vem sem a liberdade de importunar. E nós consideramos que é preciso saber responder à certa liberdade de importunar ao invés de se fechar no papel de presa.”
Pouco dias depois de sofrer um linchamento virtual, Catherine Deneuve pediu desculpas, agora no jornal Libération:
“Saúdo fraternalmente toda as vítimas de atos odiosos que possam ter-se sentido agredidas pelo manifesto publicado no Le Monde, é a elas e somente elas que apresento minhas desculpas.”
A atriz francesa sentiu-se muito mal também porque uma das signatárias do manifesto foi dizer na televisão que uma mulher poderia sentir prazer ao ser estuprada, o que Catherine Deneuve considerou, com razão, um cuspe na cara das vítimas.
A conclusão inconclusiva é que o mundo tem muita gente sem noção dos dois lados, com todos gritando ao mesmo tempo. A gritaria é tanta que Gloria Maria pode se sentir obrigada a retratar-se apenas porque disse uma verdade entre tantas vindas de várias direções.
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