A escolinha de censura de Xandão
Inspirada em Alexandre de Moraes, juíza que decretou prisão de Gusttavo Lima também condenou jornalista a sete anos de cadeia
A juíza Andréa Calado da Cruz está em evidência porque mandou prender o cantor Gusttavo Lima e a influenciadora Deolane Bezerra.
Chamo atenção, no entanto, para outra decisão recente da magistrada.
Há pouco mais de um mês, em agosto, ela condenou o jornalista pernambucano Ricardo César do Vale Antunes a sete anos de prisão.
O “crime” do jornalista
Antunes publicou, em 2023, uma série de artigos sobre “um possível esquema ilegal” na festa de São João, em Caruaru.
Eles tratavam de uma investigação do Ministério Público de Pernambuco, que teria entre seus alvos uma empresa de eventos do deputado federal Felipe Carreras (PSB-PE).
A juíza considerou o jornalista culpado dos crimes de calúnia, injúria e difamação contra o político.
Segundo ela, os crimes e sua autoria “foram amplamente comprovados pela publicação de informações na rede mundial de computadores”.
As “provas”
E quais são os argumentos que ela apresenta para demonstrar que a honra do deputado foi atingida de maneira criminosa?
É preciso citar a sentença:
As evidências apresentadas são claras e consistentes, conforme detalhado nos seguintes documentos e identificações:
ID nº 136748465: Publicação no Blog do querelado que expõe um suposto esquema de corrupção envolvendo verbas superiores a 25 milhões de reais no município de Caruaru.
ID nº 136748466: Postagem no Instagram do querelado divulgando que o “Camarote Exclusive” vai faturar 5 milhões de reais durante o show de Gusttavo Lima.
ID nº 136748467: Documento que informa que a Justiça determinou que uma festa paga quase 1 milhão de reais por camarote, sem a realização de licitação.
ID nº 136748468: Publicação induzindo que os organizadores dos maiores eventos da região estão acumulando milhões de reais por meio de compadrio e práticas sem licitação, o que aponta para um esquema de favorecimento e corrupção.
ID nº 136748469: Publicação de que o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) abriu um inquérito sobre as irregularidades envolvendo o “Camarote Exclusive” em Caruaru.
Tais evidências documentais demonstram de maneira incontestável que há uma base substancial para a acusação de práticas abusivas do querelado, que inclusive associam a imagem do autor às manchetes das publicações. A publicação e a disseminação dessas informações corroboram a materialidade delitiva e indicam a autoria dos crimes, constituindo um quadro claro de envolvimento do querelado em atividade criminosa, contumaz no abuso de liberdade de expressão.”
Cadê a argumentação?
Você entendeu direito? Eu também não. Aparentemente, o mero exercício da atividade jornalística demonstra “de maneira incontestável” a existência de um abuso da liberdade de expressão.
A sentença não menciona uma frase, ou sequer uma palavra, que possa ser interpretada como injúria, calúnia ou difamação direcionadas ao deputado Felipe Carreras.
Onde está a argumentação sólida e detalhada por parte do Judiciário, visando a demonstrar que reportagens ancoradas numa investigação do MP, envolvendo um deputado federal e dinheiro público, na verdade são mentirosas e prescindem de interesse público?
Xandão
Isso lembra muito a maneira como o ministro Alexandre de Moraes vem justificando ordens de retirada de conteúdo e suspensão de perfis de rede social no inquérito das fake news.
Raramente ele se dá ao trabalho de indicar de maneira precisa como uma postagem, às vezes de alcance ínfimo, representa uma crítica ilegítima a autoridades públicas ou, pior ainda, uma ameaça iminente à ordem pública e à democracia.
No lugar do argumento entram fórmulas como “LIBERDADE DE EXPRESSÃO NÃO É LIBERDADE DE AGRESSÃO” (assim mesmo, em maiúsculas, em nome da ênfase).
Pois a semelhança entre as sentenças dos dois magistrados não é por acaso. O ministro Alexandre de Moraes influenciou diretamente a juíza pernambucana.
Ó, a liberdade
Logo depois de listar as reportagens de Ricardo Antunes, que seriam prova incontestável de seu crime, ela recorre à autoridade do STF para lembrar que a liberdade de expressão, embora seja muito importante e coisa e tal, não pode ser assim tão livre.
“Sabiamente o Ministro Alexandre de Moraes quando do julgamento da ADI n. 4.451, asseverou:
“Tanto a liberdade de expressão quanto a participação política em uma democracia representativa somente se fortalecem em um ambiente de total visibilidade e possibilidade de exposição crítica das mais variadas opiniões sobre os governantes. O direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pela maioria”.
Todavia, a liberdade de expressão, como qualquer outro direito fundamental, não é absoluta. Limita-se na medida em que é utilizada para atacar a vida de outro ser humano. No caso em análise, o querelado mostra-se com vontade e consciência em tornar a vida do querelante um tormento absoluto.”
E assim por diante.
O Judiciário brasileiro nunca entendeu muito bem a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. Os casos de censura judicial são frequentes e chamam inclusive a atenção de organismos internacionais. No passado, o STF constituiu uma barreira contra isso. Mas as coisas mudaram e agora Alexandre de Moraes e outros ministros da corte podem ser invocados para justificar cerceamentos à imprensa Brasil afora.
Xandão faz escola.
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