Não há causa para mudar a legislação sobre aborto
Há mais de 80 anos, lei brasileira remedia situações de um país onde a agressão sexual contra mulheres se multiplica e se estende no tempo
O Brasil ficou crispado nesta semana pela possibilidade de que abortos em caso de estrupro, realizados depois da vigésima segunda semana de gestação, sejam criminalizados. Pacientes e equipes médicas passariam a responder por homicídio.
Esta é minha opinião política sobre esse assunto: não deve haver nenhuma iniciativa para restringir ou ampliar aquilo que está previsto na legislação, e que reflete não propriamente um consenso, mas uma regra com a qual a maior parte da sociedade vem aceitando conviver desde 1940 – uma década que não é especialmente lembrada pela liberalidade nos costumes.
Como disse, é uma opinião política. Não reflete minhas crenças pessoais, que não têm importância, ou aquilo que poderia ser correto do ponto de vista filosófico ou religioso. Somente aquilo que considero ser a política pública mais prudente e mais adequada ao país.
Manter as coisas como estão
São conhecidas as três situações em que o aborto, atualmente, não acarreta punições no Brasil: quando a gravidez puser em risco a vida da mãe; em casos de anencefalia, ou seja, quando o feto não tiver cérebro, tornando-se incapaz de vida autônoma e consciênte; quando a gravidez for resultado de estupro.
Manter as coisas como estão significa não aumentar ou diminuir esse número de hipóteses, mas também não criar obstáculos para o procedimento, em nenhuma dessas três situações. O projeto em discussão no Congresso cria um desses obstáculos – um limite temporal para o aborto autorizado em lei.
É importante verificar como se chegou até aqui.
STF conservador
Em abril, o Conselho Federal de Medicina (CFM) baixou uma regra proibindo médicos de interromperem a gravidez utilizando a técnica da assistolia fetal, “mesmo nos casos de aborto previstos em lei, oriundos de estupro”.
Começou um vaivém judicial. A norma foi suspensa pela Justiça Federal de Porto Alegre, restaurada pelo Tribunal Regional da Quarta Região e suspensa novamente pelo STF. Essa decisão, provisória, foi assinada pelo ministro Alexandre de Moraes. Parlamentares denunciaram o episódio como mais uma interferência indevida da Corte num tema politicamente carregado e, capitaneados por Arthur Lira (foto), puseram o PL sobre aborto para tramitar com urgência.
É preciso ver as coisas como são. A decisão de Alexandre de Moraes, nesse caso, não inovou em nada. Ela foi conservadora, no sentido mais corriqueiro da palavra: suspendeu a implementação de uma mudança e remeteu o assunto para o plenário, ao qual caberia concluir se a regra técnica do CFM está de acordo com a lei.
Ativismo do CFM
Se a discussão fosse mantida nesse plano, um dos desfechos possíveis seria a proibição da assistolia fetal e o estabelecimento de outros protocolos médicos para abortos realizados a partir da vigésima segunda semana de gestação.
Isso interromperia o uso de um procedimento admitido pela Organização Mundial de Saúde (OMS), mas que, segundo o CFM, causa sofrimento ao feto. Ao mesmo tempo, não representaria uma limitação ao aborto legal. A norma técnica não se sobreporia à lei.
Abro um parêntese. Desde o início, a intenção do CFM não foi discutir alternativas médicas, mas simplesmente dificultar a realização de abortos. Como mostra o noticiário, há cada vez mais profissionais que, mesmo trabalhando em clínicas públicas de referência, dificultam o acesso ao aborto legal ou tentam dissuadir mulheres de realizá-lo. Esses profissionais incorrem no mesmo comportamento tantas vezes criticado em ministros do STF: agem como juízes inconformados com a letra da lei, tentando adaptá-la aos seus gostos e convicções. São ativistas.
Um país violento
Seja como for, o Congresso não quis esperar. Usou a oportunidade para tentar tornar as regras vigentes no Brasil mais restritivas e, sobretudo, mais punitivas.
A razão óbvia para que o país admita abortos em caso de estupro, há mais de 80 anos, é que essa gravidez resultou da violência e não de uma escolha. Diante disso, o legislador da primeira metade do século 20 optou por não estabelecer um prazo máximo para que a mulher (ou menina) estuprada pudesse interromper a gravidez.
O que mudou desde então? Existe apenas um conhecimento mais preciso das circunstâncias em que os estupros acontecem: sabe-se hoje que cerca de dois terços dos crimes são cometidos no ambiente familiar, por parentes e amigos das vítimas. E esse, com frequência, é também o motivo por que muitas decisões de aborto são tomadas com a gravidez mais avançada.
A velha lei brasileira dá remédio a essas situações típicas de um país violento, em que a agressão sexual contra mulheres e meninas se multiplica e se estende no tempo, dentro de um ambiente que deveria protegê-las. O Congresso deveria manter a legislação como está.
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