Ariano Suassuna deixa saudades pelas tiradas que arrancavam gargalhadas da plateia. A do título parece não ter nada com política, mas é algo importantíssimo para os debates atuais. “Se você gasta o adjetivo ‘genial’ com o Chimbinha, o que é que eu vou dizer do Beethoven?” é a frase tal como dita.
Degradação linguística é uma forma de degradação da sociedade. As palavras precisam ser usadas para se referir ao significado que realmente têm. Quando as pessoas dizem as mesmas palavras mas atribuem a elas significados diferentes, temos a ruína da sociedade. Pense na Torre de Babel.
Na era das redes sociais, muitos adultos têm falado por hipérboles. Só que a figura de linguagem se perde e as pessoas passam a atribuir às palavras os significados que só elas entendem. Um fala uma coisa, o outro entende outra.
Tem sido assim com fascismo, genocídio, comunismo, ditadura. Infelizmente, tem sido assim também com democracia. Se tudo é democracia, nada é e a sociedade caminha para a desvalorização da democracia.
O Partido Comunista Chinês tem se aproveitado muito espertamente desse movimento para tentar dizer que está à frente de uma democracia. Em 2021, criou um termo específico, que tem ganhado corpo nas esquerdas mundiais: Democracia Popular de Processo Integral. Os detalhes do conceito estão numa coluna que escrevi em setembro do ano passado, quando o PT firmou um termo de parceria com o partido chinês.
Grosso modo, a ideia é mudar o conceito de democracia para que a China se enquadre. Democracia não é um ideal, uma forma de governo nem uma luta do bem contra o mal. É um caminho, uma forma de organizar a sociedade e o poder. Simplificando bastante, numa democracia o governo pode ser escolhido pelo povo e existe efetiva alternância de poder, as regras da lei são claras e valem para todos.
A nova definição do Partido Comunista Chinês subverte esse conceito e coloca a coisa no campo da economia e justiça social. Democracia é o estado de contentamento que existe quando o governo central gera oportunidades de desenvolvimento econômico e prosperidade.
Recentemente, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, esteve na China. Escreveu um texto que reproduz o conceito de Democracia Popular de Processo Integral.
“Fomos à China conhecer a história e as experiências práticas que levaram um país semifeudal e destruído pela guerra, como era a China em 1949, a transformar-se na potência econômica, tecnológica e científica que são hoje. Uma potência não apenas em benefício de alguns, mas capaz de superar a pobreza e a desigualdade de mais de 1 bilhão e 400 milhões de pessoas. (…) Este é o modelo que queremos construir com nosso povo, sem copiar ninguém, mas sempre conhecendo e respeitando as experiências de partidos de tradição socialista, popular e democrática dos mais diversos países. A história recente do Brasil mostrou, mais uma vez, quem são os defensores da subalternidade em política externa, da desigualdade social e da ditadura em nossa sociedade”, escreveu Gleisi Hoffmann.
A declaração vem num momento em que o pólo oposto subverte o conceito de ditadura. Na tentativa de chamar a atenção para arbitrariedades, censura e decisões judiciais injustas, se classifica como ditadura o que não é. Na ditadura não há possibilidade de eleger o governo, de alternância de poder, as regras não são claras e não valem para todos. Tudo isso junto.
Quem diz que vivemos numa ditadura pode achar que luta pela democracia, mas é um erro. Se tudo é ditadura, nada é. Se não somos capazes nem de dar o nome correto a um problema, é muito improvável que sejamos capazes de resolver este problema.
Voltamos à questão de Ariano Suassuna: se Chimbinha é genial, como adjetivar o Beethoven?