A fake news dos móveis que sumiram mas estavam lá tem um grande potencial destrutivo tanto para o governo quanto para a imprensa. O caminho do gerenciamento da crise até agora mostra que ele está sendo subestimado.
É inegável que tanto o governo quanto a imprensa já são alvos de descontentamento da população. Mas esse fato tem especificidades que elevam a coisa para outro patamar. Pode vir dele um efeito de esculhambação geral.
O governo tem problemas graves de imagem e o presidente tratou disso em reunião ministerial esta semana. Lula já foi elogiado pelo Hamas, insiste em passar pano para Maduro, tivemos fugas em presídios federais e estamos num recorde de dengue. Por que os móveis seriam um problema maior nesse caldeirão?
Esse escândalo é tangível para a maioria da população, fácil de explicar, gera entendimento instantâneo e familiaridade com o tema.
Nesse momento, uma boa parte dos brasileiros paga carnê de parcelamento de móveis para a própria casa. Falamos de um país em que a maioria das famílias está endividada. Imagine o sentimento de quem paga esse carnê ao saber da história.
A pessoa sabe que pagou uma cama de mais de R$ 40 mil e um sofá de mais de R$ 60 mil para a presidência. Esse dinheiro só teria sido gasto porque o ex-presidente teria sumido com tudo. Ocorre que os móveis sempre estiveram lá. E esses móveis também foram comprados com os impostos de quem hoje paga carnê. É muito mais fácil despertar raiva.
Isso sem falar no potencial de deboche e memes. Como um governo que não acha os próprios móveis dentro de casa vai querer achar os fugitivos de Mossoró?
Para a imprensa, o efeito devastador pode ser sentido agora. O escândalo só foi revelado por diligência do jornalismo investigativo. Mas isso não está na boca do povo, é encoberto pela revolta com o primeiro noticiário e pela reação diante da revelação de que o sumiço dos móveis era mentira. Surge um clima em que não importa quem acertou ou errou, o prejuízo cai sobre toda a imprensa.
Nesse ponto, muita gente ainda acha que o governo faz uma lista de móveis e Bolsonaro não havia feito. Teria listado os objetos e informado à equipe de transição de Lula que não estavam lá. Conforme o assunto é repisado, mais pessoas vão descobrir que as coisas não funcionam assim.
Há um departamento de funcionários públicos responsáveis por fiscalizar esse patrimônio. Cada peça é numerada e cada uma delas está sob a responsabilidade de um funcionário específico. Se ela muda de setor, o funcionário que recebe precisa atestar que recebeu e passa a ser responsável por ela. Tudo é feito por meio de sistema eletrônico certificado.
Isso significa que até é possível não saber imediatamente onde esteja uma ou outra peça. Mas se sabe quem é o funcionário público responsável por ela e ele tem a obrigação de indicar a localização. Ou seja, quando se noticiou que os móveis estavam sumidos, havia a informação de quem era a pessoa responsável por cada um deles. Essa pessoa não é o presidente, o ex-presidente nem as primeiras-damas, é alguém que faz parte da máquina pública.
Se o conhecimento sobre este fato aumentar, mais gente fica sabendo que a história do sumiço, que embasou a necessidade de compra, não era bem daquele jeito. Pior, que era possível saber disso e informar o povo naquele momento do ano passado.
Além disso, desde setembro do ano passado o próprio governo havia certificado a localização de todos os móveis. No entanto, não houve uma comunicação pública disso. Era o mínimo diante do carnaval que foi feito e do valor desembolsado para comprar novos móveis.
A crise gera um benefício político para o bolsonarismo, sobretudo para Michelle Bolsonaro, que gravou até vídeo falando que os móveis estavam em poder do atual governo, o que se confirmou agora. A falta de um pedido de desculpas imediato, diante das acusações feitas, reforça uma sensação de injustiça. Cai como uma luva para o discurso de perseguição que essa força política tem cultivado.
Sem gerenciamento, é uma crise que pode ir minando de uma forma ainda mais importante a confiança nas instituições governamentais e na imprensa. Quem mais perde com esse processo é o Brasil.